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Das manhãs de domingo

28 de Agosto de 2009

makes me wonder

Domingo de manhã. Dentro do carro. Nós dois.

Frio.

Indo, finalmente, ao fatídico encontro.

Procurei alguns CDs dentro do porta-luvas do carro. Queria algo feliz, bonito, mas nada muito “cheguei”, que pudesse nos deixar mais inquietos do que já estávamos.

Coloquei Maroon 5, pra quebrar um pouco o gelo.

Ele logo meteu o bedelho no botão vermelho e desligou o som.

Parei alguns instantes, observei o botão poucos segundos, sem acreditar que fosse capaz de tamanha falta de delicadeza… Deve ser o nervosismo, pensei.

Virei-me para a janela do carro e fiquei observando os bambuzais e as árvores à beira da estrada, descompassadas ao sinal do vento. Os pássaros eram os únicos que conseguiam planar…

Não suportava aquela melancolia impregnada nos cantos do carro. O ar pairava quente em minha cabeça, como mormaço. Tudo me sufocava. A presença, a passividade, a falta de diálogo… Podiam ser acanhados e monossilábicos, não me importava, pois ainda assim seria um tête-à-tête agradável, uma conversa banal pra deixar a cabeça da gente no lugar, pra nos fazer esquecer dos ares e dissabores da terra que se aproximava.

Não aguentei.

Liguei o som novamente.

E antes que tocasse o primeiro refrão da música, ele o fez novamente. Desligou-o. Com um pouco mais de severidade, perceptivelmente, pois, após apertar o botão, colocou as duas mãos firmes sobre o volante e olhou fixamente pra frente, sem piscar os olhos. Uma gota de suor escorreu da testa até o pescoço… Desafrochou a gola da camiseta e abriu os botões da blusa de frio… As ações sinalizavam os pensamentos: sabia que fazia  algo que me magoava e não queria olhar nos meus olhos.

Sei que está nervoso, mas não precisa ser…

– Ser o que? Fala! O que?

– Tosco…

– Só não gosto da voz desse cara. Não quero escutar essa música.

– Pensei que gostasse… Afinal, foi a trilha sonora do nosso primeiro encontro… E hoje é dia de relembrar… De reforçar nossos laços… Não combinamos isso antes de sair?

Não se lembrava. Realmente não se lembrava da música que tocava quando se conheceram. Bem ele! Um virginiano sagaz, que dava importância meticulosa a detalhes cotidianos dos mais corriqueiros e imperceptíveis. O andar, o olhar, a voz alterada, as pequenas permissividades das pessoas… Nada surpreendia nas condições humanas, mas em tudo se podia botar algum reparo.

Esquecera-se do próprio amor. Talvez até mesmo do amor próprio.

Havia percebido há algum tempo que as preocupações tomavam o lugar das boas lembranças, mas não imaginava que o fizessem estacionar os sentimentos em local impróprio, a ponto de não se lembrar dos momentos místicos de seu relacionamento mais forte.

É… Verdade, isso… Sunday morning, né?

Ufa!, pensei.

E pouco tempo depois estavam conversando intensamente sobre as noitadas, as viagens, os risos, os causos… Os sonhos compartilhados…

Até se esqueceram por alguns instantes do encontro que teriam logo mais, com o passado. Com a cidade e com as pessoas que pararam no tempo e pouco sabiam da história recente dos dois. Esses seres inertes de tempos atrás só especulavam sobre o rebuliço e a fuga. Nada mais.

E naquela manhã de domingo mais que propícia, perceberam, através da sonoridade da música e das palavras recordadas, que não temiam mais nada. Nem os fantasmas do passado, nem os perrengues do presente, nem as surpresas do futuro.

Eram tudo: os problemas, as soluções, as lembranças, os amigos, os livros de cabeceira, as bitucas de cigarro, as garrafas de vinho, as tatuagens nos braços, os blues das madrugadas, os abraços, os beijinhos e os carinhos sem ter fim.

Eram todo o amor que houver nessa vida. Até os ossos!

Eram as calmarias. Aquelas estranhas e lancinantes calmarias.

Das manhãs de domingo.

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Sorveteria Vouyer

2 de Dezembro de 2008

sorveteria-vouyer

Para ler ouvindo Is you is or Is you ain’t my baby, de Anita O’Day. (Não tem? Youtube! Vá ouvindo daí que eu ouço daqui…).

Passava sempre apressado pelas ruas, pra lá, pra cá, por todo lugar, não sabia ao certo pra onde ou por onde olhar, só sabia da esquina da sorveteria: o momento mais esperado da caminhada do trabalho pra casa, da casa pro trabalho.

Sempre avistava pessoas interessantes com aquela destreza sensível e aquela possibilidade aventureira, apesar de um tanto quanto remota (devido ao formato enviesado das paredes do estabelecimento gelado), de ser notado dando aquela olhadinha mais maliciosa pras partes que mais cabiam ser olhadas nas pessoas interessantes. Isso, de uma forma ou de outra, o alegrava: flertar silenciosamente com seres humanos estranhos ao seu universo de relações.

Era mais ou menos assim: avistava da esquina as pessoas que vinham pela calçada da sorveteria; se visse alguém interessante vindo, espera um pouco para atravessar a rua, andava um pouco mais devagar até chegar à calçada paralela e, através das paredes enviesadas da sorveteria, olhava pra alguma parte bonita ou engraçada do corpo de alguém.

Geralmente os alvos do assédio não reparavam na malícia de seu olhar matreiro. Aliás, não sabia se havia sido flagrado alguma vez. Nunca tinha olhado nos olhos de ninguém. Afinal, tem tanta parte do corpo interessante pra se olhar! Quem, em sã consciência, ficaria olhando pra olho? Pra peito, bunda, coxa, braço, boca era uma coisa. Joelho, pé, cotovelo, unha do dedão, podia ser até engraçado. Mas olho? Não tinha graça nenhuma!

Mas era isso que acabava achando engraçado: a falta de pureza e o excesso de malícia. Uma malícia um tanto quanto inocente nos dias de hoje, mas ainda assim uma malícia considerável. Toda ela concentrada na mente, pois nunca havia falado pra ninguém sobre suas olhadelas sacanas pela calçada da rua direita.

Pensava às vezes se as pessoas faziam a mesma coisa. Criar estratagemas pra observar o próximo. Aliás, as partes do próximo! Ainda por cima, próximos que nem tão próximos eram. Um monte de desconhecidos que se aproximavam do ponto estratégico, coordenado, calculado, fisicamente aprovado e comprovado pela noção óptica do olhar vouyer. Só isso. Nada mais.

Pensava nisso enquanto andava pela rua. Distraído feito uma porta… Parou instintivo na esquina, mas se esqueceu de olhar pros lados. Quase foi atropelado. Sorte ter percebido o carro à tempo e se jogado pra cima da calçada da outra rua, em frente à sorveteria.

Foi acodido por alguém, que pegou em seu braço, um tanto quanto deslocado. Antes de gritar um Ai!, olhou pra ver quem era. Dessa vez não teve como. Olhou nos olhos da boa alma.

Apaixonou-se momentaneamente.

Depois disso, deixou as olhadinhas de lado. Não precisava de outras pernas, bundas, coxas, peitos, braços, joelhos, pés e unhas do dedão. Encontrava-se em estado mórbido de paixão arrebatadora e nada podia ser melhor que vislumbrar todos os dias, após o trabalho, aqueles olhos castanhos que o fitavam de longe, esperando por ele na esquina da sorveteria.

A paixão um dia acabou entre os dois, como tantas outras que vieram depois e depois e depois e depois e depois e depois. Mas aprendeu algo importante: os olhares nem sempre trazem as sensações que desejamos, mas podem nos trazer desejos conhecidos e desconhecidos. Tudo um tanto quanto inusitado, no final das contas.

Cafona isso, né?

Riu sozinho enquanto tomava o cabernet, fumava o cigarro de palha e refletia sobre isso tudo. Acompanhado por todos os olhares que passaram por aquele quarto. A maioria de alegria. Graças a Deus!

Por fim, agradeceu não somente à Deus, mas também à maldita sorveteria, que fez com que um cético dissesse eu te amo pela primeira vez na vida.

Deu uma puta duma gargalhada!

Sorveteria filha-de-uma-puta-mal-paga. Mas entre, entre, vá entrando. Veja e participe. Sorveteria Vouyer à disposição.

Adendo pós-texto: veja também a versão do desenho Tom e Jerry pra música Is you is or Is you ain’t my baby. Tom todo piriguete pra cima da gatinha branca! Não tem muito haver, mas é um saudosismo bacana mesmo assim…
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Problemas demais

17 de Novembro de 2008

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A festa acabara há tempos. As luzes do apê se apagaram pra deixar o sol fazer a festinha matinal.

Aimee Mann saía do rádio e tomava todos os espaços. Passou pela cozinha cheia de louças pra lavar, tomou o corredor e incendiou a sala. Now that I’ve met you, would you object to never seeing each other again? Os copos sobre a mesa, entulhada de garrafas de bebida e cinzeiros lotados de guimbas, pareciam tremer ao som da música. O quarto, com a porta entreaberta, deixava a música e a luz entrarem.

Corpos embrulhados debaixo do edredon azul, cheio de estrelas amarelas. Dois. Somente dois. Amantes de um círculo vicioso em uma cama de flores murchas, de tanto transpirar.

Pareciam cansados, quase mortos, na verdade. Olhos fundos de olheiras, gosto de cabo de guarda-chuva na boca, cabeça rodando, mas nada de amnésia alcoólica. Sabiam de tudo que havia acontecido. A garrafa d’água ao lado da cama. As roupas jogadas por todo o recinto. Os maços de cigarros, o de filtro branco e o de filtro amarelo, carcomidos em cima da banqueta. O olhar e o ambiente indicavam certeiro: cagada. Mas, não se sabe porque, continuavam deitados. Ela de frente pra ele. Ele de frente pra ela. Começaram a se olhar, quase que instantaneamente, quando ouviram a primeira frase da música.

Pareciam ter acordado juntos, ao mesmo instante. Caso raro. Geralmente um acorda antes do outro e fica a mercê de duas possibilidades: ufa, que bom!, e volta a dormir ou continua a observar o outro dormindo ou merda, que cagada!, e volta a fechar os olhos ainda acordado, refletindo sobre o que teria acontecido horas atrás.

Esse não era nenhum dos dois casos. Tinham acordado juntos. Fitavam um ao outro com olhares ambíguos: ora de aflição, ora de safistação, quiçá de felicidade. Não sabiam o porque continuavam a se olhar, mas o importante é que se olhavam nos olhos, diretamente. Caso raro. As pessoas perderam um pouco da coragem de olhar nos olhos umas das outras . Medo de reprovação. Medo de abismo.

Ele e ela, não. Não estavam com esses medos naturais à condição humana.

Ela tomou a iniciativa: passou os dedos levemente sobre seu rosto. Acariciou sua barba.

Ele, de pronto, acariciou-lhe os lábios com as pontas dos dedos, desceu suavemente pelo pescoço e chegou aos seios. Sentiu seu coração bater mais forte. Ela também sentiu o dele. Os dois num mesmo compasso descompassado. A fumaça do incenso traçava uma linha.

– Isso não vai parar?

– Precisa?

– Sou apenas um problema que você precisa resolver.

– Então me deixa solucionar.

A partir de então resolveram solucionar tudo que fosse juntos, através do olhar. E os problemas se tornaram constantes na vida dos dois.

Ainda bem.

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Um pequeno filme sobre amor

29 de Outubro de 2008

Esperava encontrar alguém… Procurei incessantemente. Devo ter tomado uns dez copos de café. Fumado uns sete cigarros. Andei por todo o lugar. Conversei com alguns poucos, que devem ter visto você aqui. Mas não me atrevi a perguntar. Afinal, não nos conhecemos. Não formalmente. Nunca conversamos. Somente alguns verbetes próprios do ofício. Tenho apenas te observado. Pela janela do quarto, pela janela do carro, pela tela, pela janela. Afinal, quem é você? Vejo tudo enquadrado… Remoto controle.

Nada.

Não vejo nada. Não encontrei nada. Só essa sensação estranha de reconhecimento. Mórbida e esquisita igualdade. Igualdade de desconhecimento.

Esquadros

Através de frases meio entrecortadas, falo de acasos. Falo de Não Amarás (A Short Film About Love, 1988), filme do polonês Krzysztof Kieslowski. Falo do amor inocente do carteiro pela avassaladora artista. Falo do amor de Florentino Ariza por Fermina Daza, em O Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel Garcia Marques. Falo das Conversas de Botas Batidas, de Los Hermanos. Falo dos Esquadros, de Adriana Calcanhoto. Falo dos nossos pequenos prazeres, dos feixes de paixões incitados por desconhecidos e desconhecidas desse mundo. Falo daquele arrepiozinho gostoso que dá na espinha quando a gente vê alguém interessante. Falo dos casos e mais casos de voyeurismo velado que existem por aí. Falo dos amores de tantas rugas escondidos pelos recantos mais inóspitos da alma.

Quem nunca olhou pela fresta da porta, pelo vão da janela, pelo vidro do carro? Atire a primeira pedra, por favor! O pobre carteiro não está errado. Tampouco Florentino. São apenas formas de sentir. Um sentir diferente daquele idealizado pelos rococós do grande e maravilhoso amor imortal. Uma forma de amar diferente das cantigas de amigo. Diferente até das besteirinhas amorosas da pós-modernidade, onde tudo que é esteticamente belo por fora tem o dever de ser amado. É simplesmente achar que sofrer é amar demais.

Conversa de Botas Batidas

Porém, o “amar demais” pode se transformar em “sofrer em demasia” quando não se é correspondido. Talvez, nem todos os momentos importantes pra nós sejam importantes para o outro. Uma pena, mas nem todo mundo ama na mesma medida. Não da mesma forma, não com a mesma intensidade. Mas creio que o importante mesmo é a partilha. É participar, mesmo que às escondidas, da vida de alguém. Compartilhar as dores e as delícias, mesmo que de longe. É entender e aprender um pouco mais com esses processos de formação do olhar.

Assim o amor pode ser uma medida, de algumas ou de todas as coisas, a depender dos olhos de quem olha.

Pode ser tudo.

Do nada, descobre-se o tudo. Descobri, acima de tudo, que no nada podemos encontrar tudo que desejamos. Sensações estranhas, sensações naturais, sensações humanas.

Mórbida condição.

Afinal, como dizem uns e outros por aí, voyeurismo também é participação. E o amor pode até ser considerado uma forma dolorosa de sentir a vida, mas ainda assim é gostoso de sentir. Fala você que não é, pois, a partir daqui, eu é que não falo mais nada. Quero ouvir. E, por enquanto, para além do falar e do ouvir, prefiro caminhar. E escrever.

Coisas de gente sem pé nem cabeça… Mas com coração.

∞ Mais informações sobre o filme, o livro e as músicas:

A Short Film About Love pela Wikipedia
O Amor nos Tempos do Cólera pela Wikipedia
Letra de Conversa de Botas Batidas pelo Vagalume
Letra de Esquadros pelo Vagalume

∞ Para baixar o filme:

Torrent de A Short Film About Love pelo Fulldls