Posts Tagged ‘música’

h1

Strange transmissions

29 de Maio de 2010

Vou olhar os caminhos, o que tiver mais coração, eu sigo.

Caio Fernando Abreu.

– Ainda passa um Parque Edu Chaves por aqui?

– Esperamos que sim.

À meia-noite, perguntei e sorri para o casal, que retribuiu, tanto a resposta quanto o sorriso.

A menina feia de cabelo encaracolado, desgrenhado e seco inventava trejeitos. Radiante, esfuziante. Parecia ter recebido uma proposta bombástica do companheiro. Sexo ou sexo?, pensei e sorri por dentro.  Já no ônibus, ela pula nos braços do (possível) namorado, recostando-se no banco com um sorriso largo, entremeado pelas tachinhas do aparelho fixo. O rapaz, um homem esguio de sardas e óculos, retribui o carinho no resguardo, com um beijinho na ponta do nariz dela, que parou com o agito dos trejeitos e se recostou no ombro dele, quieta, sorrindo de canto de boca.

Uma senhora negra, pequena, de olhos amendoados e faixa no cabelo, fitou inúmeras vezes o casal no momento do leve estardalhaço que fizeram. Aliás, que a menina fez, com seus trejeitos exagerados e um tanto quanto chatos, até. Confesso que também olhei de rabo de olho, pra não passar batida a impressão do momento.

A noite tinha sido boa, mas, como sempre, um tanto solitária e com hora pra terminar, como muitas das noites paulistanas. Quem inventou, afinal, que essa cidade não pára? Tudo tem hota pra terminar, com ou sem sucesso. Não queria que essa noite terminasse assim, no deserto do metrô, do ponto de ônibus, da minha rua, da minha sala, do meu quarto, da minha janela. Ainda mais vendo um casal estranho trocar carícias no ponto de ônibus e imaginá-los trocando ainda mais carícias pela rua, pela sala, pelo quarto, pela cama…

À meia-noite, num horário impróprio, essa cena real-imaginária me deprimiu. Não porque eu não achasse legal ou porque eram feios a sua maneira, mas porque queria estar na mesma situação, voltando pra casa abobalhado, recebendo propostas indecorosas ao pé do ouvido. Pra piorar, ouvia Aimee Mann. Save me, como sempre. Seria mais deprimente se fosse Billie Holiday ou Dinah Washington, pensei.

E enquanto ouvia minhas canções magnolescas, um ônibus vazio passou ao lado do que eu estava. Encontrava-me em pé, com um fone de ouvido grotesco, segurando a barra de ferro, me preparando pra descer, quando a música subiu. Daí vi alguém familiar dentro do ônibus ao lado, de relance, coisa de cinco segundos. Senti uma pequena palpitação, sem querer. Transmissões estranhas, da mente pro coração. Parecia alguém que conheci em outros carnavais. Literalmente.

Não sabia o que sentir. Aliás, sabia sim. Uma palpitação leve e ao mesmo tempo eufórica com um gosto de vinho no céu de boca. Algumas poucas palavras soltas e uma vontade indescritível de estar ali, naquela cidade, acompanhado de amigos e amores. Um olhar desavisado pros lados, como que esperasse cruzar com outro olhar, também desavisado, e trocar olhares desavisados de tempos em tempos, sem muito compromisso, sem muita exaltação aparente. Uma vontade louca de ser eu mesmo e de, contraditória e igualmente, ser alguém diferente daquilo que já fui, mais igual ao que sou hoje, mais igual ao que possivelmente serei amanhã ou depois.

Sabia sim que sentimento era esse e não era tristeza: era esperança.

Quando descobri o que era, cheguei ao meu ponto. Ainda esperançoso, andei pela rua escura, sem uma viva alma que me acompanhasse até o portão do condomínio. Ainda ouvia música, mas agora nada tão magnolesco, nada tão Save me. Estava mais pra Norah Jones. Lembro de um suave I belong to you vindo da letra.

E eu real e fantasiosamente pertencia. Pertencia agora à grande metrópole. Pertencia a mim mesmo e ao mundo. Pertencia às possibilidades. Pertencia, permanecia, provocaria, fantasiaria, realizaria, profetizei pra mim mesmo em voz alta.

Afinal, ao entrar no  meu quarto, olhar a rua vazia pela janela, acender um cigarro e sentir o vento, sentia que, depois de alguns meses tentando esquecer, eu ainda lembrava, com um carinho tão grande e tão surreal. Lembrava das pessoas e do mundo em que vivia. Lembrava das minhas eternas responsabilidades. Lembrava dos carnavais. E esperava o mundo que viria, sem ao menos saber que ele, o mundo, já estava ali, sob meus pés. E a esperança era isso: sabendo que mesmo sem pátria, sem partido, sem alguém, eu ainda tinha pernas pra bater, gentes pra conhecer, novos pontos de ônibus, novas ruas pra andar.

Eu realmente belong.

E, sim, além de pernas, descobri que tenho asas pra bater.

h1

Das manhãs de domingo

28 de Agosto de 2009

makes me wonder

Domingo de manhã. Dentro do carro. Nós dois.

Frio.

Indo, finalmente, ao fatídico encontro.

Procurei alguns CDs dentro do porta-luvas do carro. Queria algo feliz, bonito, mas nada muito “cheguei”, que pudesse nos deixar mais inquietos do que já estávamos.

Coloquei Maroon 5, pra quebrar um pouco o gelo.

Ele logo meteu o bedelho no botão vermelho e desligou o som.

Parei alguns instantes, observei o botão poucos segundos, sem acreditar que fosse capaz de tamanha falta de delicadeza… Deve ser o nervosismo, pensei.

Virei-me para a janela do carro e fiquei observando os bambuzais e as árvores à beira da estrada, descompassadas ao sinal do vento. Os pássaros eram os únicos que conseguiam planar…

Não suportava aquela melancolia impregnada nos cantos do carro. O ar pairava quente em minha cabeça, como mormaço. Tudo me sufocava. A presença, a passividade, a falta de diálogo… Podiam ser acanhados e monossilábicos, não me importava, pois ainda assim seria um tête-à-tête agradável, uma conversa banal pra deixar a cabeça da gente no lugar, pra nos fazer esquecer dos ares e dissabores da terra que se aproximava.

Não aguentei.

Liguei o som novamente.

E antes que tocasse o primeiro refrão da música, ele o fez novamente. Desligou-o. Com um pouco mais de severidade, perceptivelmente, pois, após apertar o botão, colocou as duas mãos firmes sobre o volante e olhou fixamente pra frente, sem piscar os olhos. Uma gota de suor escorreu da testa até o pescoço… Desafrochou a gola da camiseta e abriu os botões da blusa de frio… As ações sinalizavam os pensamentos: sabia que fazia  algo que me magoava e não queria olhar nos meus olhos.

Sei que está nervoso, mas não precisa ser…

– Ser o que? Fala! O que?

– Tosco…

– Só não gosto da voz desse cara. Não quero escutar essa música.

– Pensei que gostasse… Afinal, foi a trilha sonora do nosso primeiro encontro… E hoje é dia de relembrar… De reforçar nossos laços… Não combinamos isso antes de sair?

Não se lembrava. Realmente não se lembrava da música que tocava quando se conheceram. Bem ele! Um virginiano sagaz, que dava importância meticulosa a detalhes cotidianos dos mais corriqueiros e imperceptíveis. O andar, o olhar, a voz alterada, as pequenas permissividades das pessoas… Nada surpreendia nas condições humanas, mas em tudo se podia botar algum reparo.

Esquecera-se do próprio amor. Talvez até mesmo do amor próprio.

Havia percebido há algum tempo que as preocupações tomavam o lugar das boas lembranças, mas não imaginava que o fizessem estacionar os sentimentos em local impróprio, a ponto de não se lembrar dos momentos místicos de seu relacionamento mais forte.

É… Verdade, isso… Sunday morning, né?

Ufa!, pensei.

E pouco tempo depois estavam conversando intensamente sobre as noitadas, as viagens, os risos, os causos… Os sonhos compartilhados…

Até se esqueceram por alguns instantes do encontro que teriam logo mais, com o passado. Com a cidade e com as pessoas que pararam no tempo e pouco sabiam da história recente dos dois. Esses seres inertes de tempos atrás só especulavam sobre o rebuliço e a fuga. Nada mais.

E naquela manhã de domingo mais que propícia, perceberam, através da sonoridade da música e das palavras recordadas, que não temiam mais nada. Nem os fantasmas do passado, nem os perrengues do presente, nem as surpresas do futuro.

Eram tudo: os problemas, as soluções, as lembranças, os amigos, os livros de cabeceira, as bitucas de cigarro, as garrafas de vinho, as tatuagens nos braços, os blues das madrugadas, os abraços, os beijinhos e os carinhos sem ter fim.

Eram todo o amor que houver nessa vida. Até os ossos!

Eram as calmarias. Aquelas estranhas e lancinantes calmarias.

Das manhãs de domingo.