Ou “25 anos blues”.
Para ler ouvindo To Love Somebody, com a serenidade de Nina Simone e a fúria de Janis Joplin.
Dialogue a trois:
– Navegar é preciso. Viver não é preciso.
– “Precisar” em que sentido: exatidão ou necessidade?
– Exatidão.
– É preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer a morte.
– Exatidão ou necessidade?
– Necessidade.
– Vou olhar os caminhos. O que tiver mais coração, eu sigo.
– Não tem verbo “precisar”.
– Mas é exato e necessário.
Esse ano não teve texto ou palavra ou metonímia ou onomatopeia de alegria nem de tristeza. Silêncio em forma de refrigerantes sem gás e salgadinhos de festa. Paro de conversar e olho para o quase jardim de inverno com certa melancolia. Uma orquídea seca cai do galho, leve como leve pluma muito leve pousa. Acompanho estático todo o seu movimento calmo e ondulado até o gramado. Penso logo de cara no tipo de movimento que a flor realiza enquanto a gravidade, o vento e o atrito agem sobre suas pétalas. Estarrecido por pensar primeiro na física das pétalas ao invés da beleza subjetiva do momento, falo alto, em sinal de auto-censura travestida de descaso:
– Flores mortas não fedem nem cheiram.
A maioria ali, indiferente a qualquer crítica ou auto-crítica, continua a falar alto enquanto as orquídeas secas caem com o vento. E numa espiral de beleza e silêncio e loucura começo a refletir não mais sobre as noções físicas, mas sobre o tempo metafórico das pétalas.
Talvez essa melancolia seja só reflexo da Lua na casa 4 em instrospecção com o Sol na casa 12. Ou o fim do ciclo revolutivo de Mercúrio. Ou o novo ano astral que se inicia. Tudo junto, sei lá. Ou talvez seja só uma pequena ponta de indiferença mesmo, uma tristezinha velada, uma pequena alegria que não faz muito sentido, talvez nada muito astrológico, nada tão visão divina. Mas, de certa forma, preciso que assim seja: alto astral altas transas lindas canções, para não pensar na física das pétalas e de todas as outras coisas. Não preciso movimentos físicos matemáticos químicos por agora. Preciso místicas. Exatas e necessárias.
Mas são tempos de correria, sem dúvida. Muita coisa im-por-tan-te pra fazer, muita pe-dra pra carregar, muito la-bi-rin-to pra percorrer! Falta cabeça pra pensar no que está acontecendo, avaliar-se e refletir sobre a pétala que cai, sobre o tempo que se leva. E se for parar pra pensar bem, há tanta coisa nova e bonita pra ser sonhada nesse ano do escorpião, de grandes realizações. Há tanto deserto pra percorrer, floresta pra desbravar, mar pra navegar!
E a melancolia, talvez, resida aí mesmo, em todas essas grandes e escorpianas realizações. São aprendizados, certamente. Burocráticos e duros, trazem dores de cabeça inevitáveis, cansaços de fundas olheiras, aborrecimentos físicos, mas nem por isso são menos interessantes ou necessários ou contextualizados ou propícios. E mesmo assim, mesmo sabendo da necessidade de tudo isso, ando precisado de algo mais. De me render a certos devaneios. De mais paciência para reencontrar a pureza nas almas de luta. De misticismos esotéricos que alucinem o marasmo dos dias. De gritos incontidos, de goles de vida, de choros cheios de olhos, de nuvens que escondam as luas mais bonitas, assim como a caixa que guarda o carneirinho do pequeno príncipe.
– Preciso de doações prazerosas de corpo e alma, por Jah!, grito em silêncio enquanto olho o jardim.
A flor seca finalmente caiu.
Depois que ela desfaleceu no gramado, penso nessas contradições do querer e do viver a todo tempo, como se meu mapa astral me perseguisse, como se um espelho me levasse me refletisse me guiasse por tudo que é lugar. E é quando estou com a cabeça pesada, lisérgica de tanto pensar nisso tudo, que saio por aí. Como leve pluma muito leve, pouso de madrugada em madrugada em qualquer balada estranha e multicolorida do centro.
Da sacada de um prédio antigo, olhos fechados, ergo a cabeça para o alto e vejo aos poucos a imensidão da lua cheia. Olho para baixo e vejo a calçada molhada e suja. Vejo algo reluzente gotejar em uma poça d’água. Meio zonzo, cogito ir até lá pegar essas gotas de luz, penso em cair levemente como a orquídea do quase jardim de inverno, pois já é quase inverno e tempo seco e vento e movimento e bêbado não fico pensando em todas as coisas que me incomodam, mas em não faça assim, não faça nada por mim, não vá pensando que eu sou seu, uma música bonita na voz do Ney. E nesse momento já não me censuro mais pelos primeiros pensamentos. A melancolia me parece mais leve também. Sinto o vento, o tempo e os movimentos como se orquídeas caídas pudessem voar…
Olho para os lados e vejo você de relance na luz negra. Duas caveiras multicoloridas olham para nós. Muita gente se olha com estranheza. Algumas pessoas me olham com estranheza. Já não olho mais para as gotas de luz. Já não vejo o chão. Só vejo seus olhos meio desavisados. Não sei ao certo o que você vê. E olhando serenamente você ali ao longe, recito baixinho:
– Te daria essa lua se você quisesse, se respondesse aos meus apelos. Não faça assim, não faça nada por mim, não vá… Pois hoje olhando a chuva pela janela do ônibus, percebi que já me encontrei há tempos e não preciso de vaidades, identidades, sofrimentos. Preciso seus olhos sobre os meus. Preciso seus sorrisos amarelos. Preciso tuas mãos no meu rosto. Preciso não precisar as coisas.
Como mantra internalizado, esqueço cada pessoa à minha volta. Você me olha também, sem assombros. Com precisão de esquecimento, para não precisar mais os dias deixados para trás, com precisão de estar atento e forte, para não ter tempo de temer a morte, sigo instintivo, sem pensar demais nos poréns. Após dois minutos de dança no escuro, te peço um beijo. Você brinca e diz sim com um sorriso. E o que me sai dessas entrelinhas, sem texto ou palavra ou metonímia ou onomatopeia de alegria ou tristeza, é um dos beijos mais bonitos, calmo e demorado como a orquídea que cai no gramado.
– Somos orquídeas caídas, falo baixinho.
– O que disse?, você me pergunta.
– Que gostei de você, respondo calmamente.
– Como? Não te ouvi…, você me responde sorrindo.
– Nada não. Talvez a gente nem se veja amanhã ou depois. A gente perde muito tempo na vida. A cada palavra que sai a gente morre um pouco. Fica comigo essa noite…, falo com os olhos.
– E não te arrependerás! É isso?!, você me diz gargalhando.
– Isso. E não te arrependerás, tipo Nelson Gonçalves, gargalho junto.
Acho bonito nosso diálogo a três, nós dois e a mística das pequenas coisas, mesmo sabendo que o desencontro e o desassossego seriam inevitáveis. Místicas não duram para sempre. Nós também não. Afinal, uma noite foi o que pedi e uma noite foi o que tive. Por isso mesmo não quis saber nada: nem nome, nem telefone, nem endereço.
– Tenho receios de me aventurar demais por você, por seus cachos e olhos e pálpebras e arranjos e afagos e quereres e escombros e esquinas eteceteras, resmungo embriagado enquanto nos despedimos.
Um último beijo rápido e profundo e bonito e te dou as costas pelas ruas do centro e nunca olho para trás. Fujo com o olhar fixo num ponto qualquer dum sol qualquer que raia que cega que tira a cor das coisas que deixa tudo branco.
Serenidade, apesar de tudo. Certa fúria comedida pelas palavras desmedidas, pela loucura crua das conversas, pelos vitupérios da embriaguez, mas ainda assim detalhes tão pequenos…
Parece que nascemos para fugir querendo ficar. E olhamos para pontos fixos que remontam um mesmo lugar qualquer, talvez por medo de ficarmos cegos de amor pelo mundo divino maravilhoso que nos cerca. Em noites como essa a melancolia parece não existir: estranhamente é a escuridão que me abre os olhos. Tristeza vezenquando serena vezenquando furiosa que retorna pelas manhãs, quando a claridade volta a me cegar. Talvez, por isso tudo, por desejo de contrariar as coisas estabelecidas, preciso te rever agora. Exato e necessário.
Fato que são 25 anos de flores secas e noites serenas e fugas cegas e manhãs de domingo. Quem sabe não te reencontro em algum jardim por aí?
Afinal, somos orquídeas caídas.
Cegos de quase inverno.