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Orquídeas caídas

20 de Outubro de 2011

Ou “25 anos blues”.

Para ler ouvindo To Love Somebody, com a serenidade de Nina Simone e a fúria de Janis Joplin.

Dialogue a trois:

– Navegar é preciso. Viver não é preciso.
– “Precisar” em que sentido: exatidão ou necessidade?
– Exatidão.
– É preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer a morte.
– Exatidão ou necessidade?
– Necessidade.
– Vou olhar os caminhos. O que tiver mais coração, eu sigo.
– Não tem verbo “precisar”.
– Mas é exato e necessário.

Esse ano não teve texto ou palavra ou metonímia ou onomatopeia de alegria nem de tristeza. Silêncio em forma de refrigerantes sem gás e salgadinhos de festa. Paro de conversar e olho para o quase jardim de inverno com certa melancolia. Uma orquídea seca cai do galho, leve como leve pluma muito leve pousa. Acompanho estático todo o seu movimento calmo e ondulado até o gramado. Penso logo de cara no tipo de movimento que a flor realiza enquanto a gravidade, o vento e o atrito agem sobre suas pétalas. Estarrecido por pensar primeiro na física das pétalas ao invés da beleza subjetiva do momento, falo alto, em sinal de auto-censura travestida de descaso:

– Flores mortas não fedem nem cheiram.

A maioria ali, indiferente a qualquer crítica ou auto-crítica, continua a falar alto enquanto as orquídeas secas caem com o vento. E numa espiral de beleza e silêncio e loucura começo a refletir não mais sobre as noções físicas, mas sobre o tempo metafórico das pétalas.

Talvez essa melancolia seja só reflexo da Lua na casa 4 em instrospecção com o Sol na casa 12. Ou o fim do ciclo revolutivo de Mercúrio. Ou o novo ano astral que se inicia. Tudo junto, sei lá. Ou talvez seja só uma pequena ponta de indiferença mesmo, uma tristezinha velada, uma pequena alegria que não faz muito sentido, talvez nada muito astrológico, nada tão visão divina. Mas, de certa forma, preciso que assim seja: alto astral altas transas lindas canções, para não pensar na física das pétalas e de todas as outras coisas. Não preciso movimentos físicos matemáticos químicos  por agora. Preciso místicas. Exatas e necessárias.

Mas são tempos de correria, sem dúvida. Muita coisa im-por-tan-te pra fazer, muita pe-dra pra carregar, muito la-bi-rin-to pra percorrer! Falta cabeça pra pensar no que está acontecendo, avaliar-se e refletir sobre a pétala que cai, sobre o tempo que se leva. E se for parar pra pensar bem, há tanta coisa nova e bonita pra ser sonhada nesse ano do escorpião, de grandes realizações. Há tanto deserto pra percorrer, floresta pra desbravar, mar pra navegar!

E a melancolia, talvez, resida aí mesmo, em todas essas grandes e escorpianas realizações. São aprendizados, certamente. Burocráticos e duros, trazem dores de cabeça inevitáveis, cansaços de fundas olheiras, aborrecimentos físicos, mas nem por isso são menos interessantes ou necessários ou contextualizados ou propícios. E mesmo assim, mesmo sabendo da necessidade de tudo isso, ando precisado de algo mais. De me render a certos devaneios. De mais paciência para reencontrar a pureza nas almas de luta. De misticismos esotéricos que alucinem o marasmo dos dias. De gritos incontidos, de goles de vida, de choros cheios de olhos, de nuvens que escondam as luas mais bonitas, assim como a caixa que guarda o carneirinho do pequeno príncipe.

– Preciso de doações prazerosas de corpo e alma, por Jah!, grito em silêncio enquanto olho o jardim.

A flor seca finalmente caiu.

Depois que ela desfaleceu no gramado, penso nessas contradições do querer e do viver a todo tempo, como se meu mapa astral me perseguisse, como se um espelho me levasse me refletisse me guiasse por tudo que é lugar. E é quando estou com a cabeça pesada, lisérgica de tanto pensar nisso tudo, que saio por aí. Como leve pluma muito leve, pouso de madrugada em madrugada em qualquer balada estranha e multicolorida do centro.

Da sacada de um prédio antigo, olhos fechados, ergo a cabeça para o alto e vejo aos poucos a imensidão da lua cheia. Olho para baixo e vejo a calçada molhada e suja. Vejo algo reluzente gotejar em uma poça d’água. Meio zonzo, cogito ir até lá pegar essas gotas de luz, penso em cair levemente como a orquídea do quase jardim de inverno, pois já é quase inverno e tempo seco e vento e movimento e bêbado não fico pensando em todas as coisas que me incomodam, mas em não faça assim, não faça nada por mim, não vá pensando que eu sou seu, uma música bonita na voz do Ney. E nesse momento já não me censuro mais pelos primeiros pensamentos. A melancolia me parece mais leve também. Sinto o vento, o tempo e os movimentos como se orquídeas caídas pudessem voar…

Olho para os lados e vejo você de relance na luz negra. Duas caveiras multicoloridas olham para nós. Muita gente se olha com estranheza. Algumas pessoas me olham com estranheza. Já não olho mais para as gotas de luz. Já não vejo o chão. Só vejo seus olhos meio desavisados. Não sei ao certo o que você vê. E olhando serenamente você ali ao longe, recito baixinho:

– Te daria essa lua se você quisesse, se respondesse aos meus apelos. Não faça assim, não faça nada por mim, não vá… Pois hoje olhando a chuva pela janela do ônibus, percebi que já me encontrei há tempos e não preciso de vaidades, identidades, sofrimentos. Preciso seus olhos sobre os meus. Preciso seus sorrisos amarelos. Preciso tuas mãos no meu rosto. Preciso não precisar as coisas.

Como mantra internalizado, esqueço cada pessoa à minha volta. Você me olha também, sem assombros. Com precisão de esquecimento, para não precisar mais os dias deixados para trás, com precisão de estar atento e forte, para não ter tempo de temer a morte, sigo instintivo, sem pensar demais nos poréns. Após dois minutos de dança no escuro, te peço um beijo. Você brinca e diz sim com um sorriso. E o que me sai dessas entrelinhas, sem texto ou palavra ou metonímia ou onomatopeia de alegria ou tristeza, é um dos beijos mais bonitos, calmo e demorado como a orquídea que cai no gramado.

– Somos orquídeas caídas, falo baixinho.

– O que disse?, você me pergunta.

Que gostei de você, respondo calmamente.

Como? Não te ouvi…, você me responde sorrindo.

– Nada não. Talvez a gente nem se veja amanhã ou depois. A gente perde muito tempo na vida. A cada palavra que sai a gente morre um pouco. Fica comigo essa noite…, falo com os olhos.

– E não te arrependerás! É isso?!, você me diz gargalhando.

– Isso. E não te arrependerás, tipo Nelson Gonçalves, gargalho junto.

Acho bonito nosso diálogo a três, nós dois e a mística das pequenas coisas,  mesmo sabendo que o desencontro e o desassossego seriam inevitáveis. Místicas não duram para sempre. Nós também não. Afinal, uma noite foi o que pedi e uma noite foi o que tive. Por isso mesmo não quis saber nada: nem nome, nem telefone, nem endereço.

– Tenho receios de me aventurar demais por você, por seus cachos e olhos e pálpebras e arranjos e afagos e quereres e escombros e esquinas eteceteras, resmungo embriagado enquanto nos despedimos.

Um último beijo rápido e profundo e bonito e te dou as costas pelas ruas do centro e nunca olho para trás. Fujo com o olhar fixo num ponto qualquer dum sol qualquer que raia que cega que tira a cor das coisas que deixa tudo branco.

Serenidade, apesar de tudo. Certa fúria comedida pelas palavras desmedidas, pela loucura crua das conversas, pelos vitupérios da embriaguez, mas ainda assim detalhes tão pequenos…

Parece que nascemos para fugir querendo ficar. E olhamos para pontos fixos que remontam um mesmo lugar qualquer, talvez por medo de ficarmos cegos de amor pelo mundo divino maravilhoso que nos cerca. Em noites como essa a melancolia parece não existir: estranhamente é a escuridão que me abre os olhos. Tristeza vezenquando serena vezenquando furiosa que retorna pelas manhãs, quando a claridade volta a me cegar. Talvez, por isso tudo, por desejo de contrariar as coisas estabelecidas, preciso te rever agora. Exato e necessário.

Fato que são 25 anos de flores secas e noites serenas e fugas cegas e manhãs de domingo. Quem sabe não te reencontro em algum jardim por aí?

Afinal, somos orquídeas caídas.

Cegos de quase inverno.

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Strange transmissions

29 de Maio de 2010

Vou olhar os caminhos, o que tiver mais coração, eu sigo.

Caio Fernando Abreu.

– Ainda passa um Parque Edu Chaves por aqui?

– Esperamos que sim.

À meia-noite, perguntei e sorri para o casal, que retribuiu, tanto a resposta quanto o sorriso.

A menina feia de cabelo encaracolado, desgrenhado e seco inventava trejeitos. Radiante, esfuziante. Parecia ter recebido uma proposta bombástica do companheiro. Sexo ou sexo?, pensei e sorri por dentro.  Já no ônibus, ela pula nos braços do (possível) namorado, recostando-se no banco com um sorriso largo, entremeado pelas tachinhas do aparelho fixo. O rapaz, um homem esguio de sardas e óculos, retribui o carinho no resguardo, com um beijinho na ponta do nariz dela, que parou com o agito dos trejeitos e se recostou no ombro dele, quieta, sorrindo de canto de boca.

Uma senhora negra, pequena, de olhos amendoados e faixa no cabelo, fitou inúmeras vezes o casal no momento do leve estardalhaço que fizeram. Aliás, que a menina fez, com seus trejeitos exagerados e um tanto quanto chatos, até. Confesso que também olhei de rabo de olho, pra não passar batida a impressão do momento.

A noite tinha sido boa, mas, como sempre, um tanto solitária e com hora pra terminar, como muitas das noites paulistanas. Quem inventou, afinal, que essa cidade não pára? Tudo tem hota pra terminar, com ou sem sucesso. Não queria que essa noite terminasse assim, no deserto do metrô, do ponto de ônibus, da minha rua, da minha sala, do meu quarto, da minha janela. Ainda mais vendo um casal estranho trocar carícias no ponto de ônibus e imaginá-los trocando ainda mais carícias pela rua, pela sala, pelo quarto, pela cama…

À meia-noite, num horário impróprio, essa cena real-imaginária me deprimiu. Não porque eu não achasse legal ou porque eram feios a sua maneira, mas porque queria estar na mesma situação, voltando pra casa abobalhado, recebendo propostas indecorosas ao pé do ouvido. Pra piorar, ouvia Aimee Mann. Save me, como sempre. Seria mais deprimente se fosse Billie Holiday ou Dinah Washington, pensei.

E enquanto ouvia minhas canções magnolescas, um ônibus vazio passou ao lado do que eu estava. Encontrava-me em pé, com um fone de ouvido grotesco, segurando a barra de ferro, me preparando pra descer, quando a música subiu. Daí vi alguém familiar dentro do ônibus ao lado, de relance, coisa de cinco segundos. Senti uma pequena palpitação, sem querer. Transmissões estranhas, da mente pro coração. Parecia alguém que conheci em outros carnavais. Literalmente.

Não sabia o que sentir. Aliás, sabia sim. Uma palpitação leve e ao mesmo tempo eufórica com um gosto de vinho no céu de boca. Algumas poucas palavras soltas e uma vontade indescritível de estar ali, naquela cidade, acompanhado de amigos e amores. Um olhar desavisado pros lados, como que esperasse cruzar com outro olhar, também desavisado, e trocar olhares desavisados de tempos em tempos, sem muito compromisso, sem muita exaltação aparente. Uma vontade louca de ser eu mesmo e de, contraditória e igualmente, ser alguém diferente daquilo que já fui, mais igual ao que sou hoje, mais igual ao que possivelmente serei amanhã ou depois.

Sabia sim que sentimento era esse e não era tristeza: era esperança.

Quando descobri o que era, cheguei ao meu ponto. Ainda esperançoso, andei pela rua escura, sem uma viva alma que me acompanhasse até o portão do condomínio. Ainda ouvia música, mas agora nada tão magnolesco, nada tão Save me. Estava mais pra Norah Jones. Lembro de um suave I belong to you vindo da letra.

E eu real e fantasiosamente pertencia. Pertencia agora à grande metrópole. Pertencia a mim mesmo e ao mundo. Pertencia às possibilidades. Pertencia, permanecia, provocaria, fantasiaria, realizaria, profetizei pra mim mesmo em voz alta.

Afinal, ao entrar no  meu quarto, olhar a rua vazia pela janela, acender um cigarro e sentir o vento, sentia que, depois de alguns meses tentando esquecer, eu ainda lembrava, com um carinho tão grande e tão surreal. Lembrava das pessoas e do mundo em que vivia. Lembrava das minhas eternas responsabilidades. Lembrava dos carnavais. E esperava o mundo que viria, sem ao menos saber que ele, o mundo, já estava ali, sob meus pés. E a esperança era isso: sabendo que mesmo sem pátria, sem partido, sem alguém, eu ainda tinha pernas pra bater, gentes pra conhecer, novos pontos de ônibus, novas ruas pra andar.

Eu realmente belong.

E, sim, além de pernas, descobri que tenho asas pra bater.

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Palhaços no salão

9 de Novembro de 2008

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Andávamos a passos largos e apressados. Tínhamos de ir logo ao supermercado, comprar todas aquelas coisinhas imprescindíveis à uma noite pra lá de divertida: comidas de beliscar, bebida alcoólica e cigarros. O que mais nos afligia, até então, era a falta do famigerado gim.

Acabamos indo de cerveja mesmo: um fardo de latões. Perambulamos um tiquinho mais pra pegar o restante dos ingredientes e partimos pra esperada, combinada e cada vez mais próxima, gandaia particular. Estávamos quase que fugindo do mundo.

Não, não era uma fuga de verdade, no-sentido-literal-da-palavra. Eram pequenas vontades, que há muito não eram realizadas. Conversar, partilhar, gargalhar. Falar da vida: nossa e dos outros, claro.

Enfim… Cerveja vai, cerveja vem. As canequinhas brindavam em sinal de alegria, mais loucas que o morcegão da DC Comics. Fomos pra cozinha, fazer a prometida porçãozinha de linguiça defumada com provolone e pão amanhecido. Delícia da vida. Chuchu beleza!

Lembro que falávamos de tudo um pouco. Dos projetos, das realizações passadas, dos romances que não davam certo, dos casos escabrosos e também dos engraçados.

Pequenas celebrações.

Noite severina, severina noite.

Nostalgia do passado, incerteza do presente e esperança de futuro.

Tudo era farto. Tudo era alegria. Tudo era cansaço. Tudo era disposição.

Tu-ru-ru-ru, Tu-ru-ru-ru, Tu-ru-ru-ru-ruuuuuuuu. Tu-ru-ru-ru, Tu-ru-ru-ru, Tu-ru…

Celular tocando. Que porre!, pensei.

Alô?

– Vem pra cá, pra minha casa. Vêm agora!

– Num posso. Tô longe daí. E já são quase onze e meia. Num tem como não.

– Vou ter de falar por telefone, então… Acontece que a…

Parei de ouvir.

Deixa eu conversar com outra pessoa, isso é brincadeira.

– Não é, mas, enfim…

O segundo pra passar o telefone de uma mão pra outra podia ter durado a noite toda, mas foi rápido, um segundinho só.

– É ver… ver… verdade sim. Ela morreu.

Pane. Choro. Tremedeira. Descompasso. Soco no estômago.

Calma, calma, o que foi?

Abraço. Água. Cigarro. Tremedeira. Senta. Cadeira. Aqui! Transe… Como pode?

Celular. Me empresta seu celular!

É verdade mesmo?

– É! Vem logo pra cá. Tá todo mundo aqui!

Celular. Táxi. Cigarro. Tempo. Tempo. Tempo. Não passa, porra! Que merda!

Buzina. Portão. Rua. Porta. Rodovia. Choro. Choro. Choro. Descompasso. Gente fantasiada. Zorro, Batman, Amy, cotonete, puta, travesti, médico, Jesus! Gente louca! Gente estranha. Gente feliz… Eu, chocado. Com o paiol e o fósforo grudados na mão.

Desci as escadas com o coração em punho. Toquei a campainha com alguma esperança.

A cantora abre a porta, sem suas vestimentas peculiares. Cara inchada. Abraço. Choro.

Era verdade.

Meus amigos, todos sérios, uns de cara fechada, outros com os olhos marejados, alguns, como eu, sem chão. Surreal. Não era um velório, mas a casa, antes radiante, estava escura. Parecia ter velas grudadas nas paredes. As pessoas pareciam estar vestidas de luto. Era verdade.

Música. Precisava de música. Qualquer uma. Escolhi o blues. Sentei num canto, ouvi e fumei mais.

Nada, não queria nada nem ninguém. A alegria, com um só baque, se esvaiu completamente.

Fomos ver como os outros estavam. Passamos pelas ruas lotadas de máscaras, fantasias, alegria e embriaguez. Nós, trizteza. Mal chegamos e logo sentei sozinho na escadaria. Alguns vieram me abraçar, outros conversar. Não queria nada, nem ninguém. Chorei. Como há tempos não chorava.

De súbito, alguém tirou o fone do meu ouvido. Só vi a imagem na camiseta: mão, exclamação, Avante!

Não aconteceu nada. Tá tudo bem. Ela não morreu.

Parei.

Baque.

Alívio. Nostalgia. Gente triste sorrindo. Gente alegre desacreditada. Gente boba se abraçando.

Tudo era brincadeira. Tudo era mal-gosto. Tudo era mórbida alegria. Tudo era humilhação. Tudo era vergonha.

Pra que? Por que? Pra quem? Como? Quando? Onde? Quem?!?!

Lead fácil de entender.

Criança de 19 anos, com problemas de compreensão das coisas e dos sentimentos do mundo, finge a própria morte, na tentativa de desvendar os mistérios do coração.

Do coração dos outros. Do coração de um, do coração de todos. Do coração dos despreparados.

Afinal, quem não quer se sentir amado por alguém?

Vai entender!

Cada um tem aquela paz que não quer seguir admitindo. Cada um brinca como pode e mobiliza como quer. Cada um tem as vontades que a cabeça realiza e que o coração não reflete. Cada ser tem sonhos a sua maneira.

O problema é que, pra realizar os sonhos a gente é obrigado a deixar uma parte de nós pra trás. Fantasias custam caro.

E a fantasia de palhaço que fui obrigado a vestir na festa dessa noite custa a sair. Foi pesada de vestir e está pesando pra sair.

Mas vai passar.

O resultado disso tudo são só mais algumas noites em claro, como tantas outras desses últimos tempos… Dessas últimas fantasias gastas.

A uma alma infeliz que ainda teimo em amar. Não se foi dessa vez, mas perdeu parte de sua luz. E um pouco do caráter também.
Ao leitor preparado, espero que saiba que tudo que escrevi nessas linhas tortas faz parte de uma grande brincadeira. Um ato lúdico de fazer os outros se esguelarem, típico de palhaços. Mas por mim tá tudo bem, tá tudo ótimo, pois fiquei sabendo que esse tipo de brincadeira é a nova moda da pós-modernidade. Lá no País dos Retardados, na pequena Vila dos Sentimentais, Rua do Desencanto, nº 171.
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café. cigarros. miçangas.

28 de Outubro de 2008

O dia raiou.

Os sonhos da noite deram lugar aos desgastes do dia.

Como sempre, acordou às cinco e meia da manhã, preparou o café e comeu um pedaço de broa de milho com erva-doce.  Como sempre, o radinho a pilha estava ligado. Como sempre, a gata entrou miando pela porta entreaberta e, como sempre, Hilda encheu a cumbuca com leite.

Sentou-se na banqueta em frente ao pé de jabuticaba e apreciou os primeiros raios de sol da manhã. Começou a pensar nos filhos, que há tanto tempo não a visitavam. Pensou também em tudo que estava sentindo, principalmente nos últimos dois dias.

O ar sereno e as rugas de velhinha bondosa escondiam a aflição do pensamento. Na verdade, não sabia o que sentir. Queria fugir. Mas sabia, por experiência própria, que de nada adiantava ir para outro lugar, tentar uma nova vida. Tinha que fugir de si mesma. Encarnar outros personagens, colocar outras máscaras, vestir outras fantasias, talvez.

Mas, ainda assim, a cabeça quando deita no travesseiro, continua a vislumbrar o passado. Tudo retorna, tudo faz parte novamente. A viagem de fuga não se completa. Fica limitada às máscaras, às fantasias, aos personagens, pensou.

As tantas fugas e o pesar das rugas foram interrompidos por Cartola. O som do rádio passou pela porta da cozinha, percorreu o corredor de piso vermelho e vinha bater forte em sua mente, em sua face, em seu coração.

“Deixe-me ir, preciso andar, vou por aí a procurar, sorrir pra não chorar”.

E Hilda chorou.