Para ler ouvindo Atrás da Porta e Mil Perdões.
Toc-toc.
– Quem bate?
(Desce o som. Vazio. Sobe aquele cenário escuro, aquele suspiro frio e enevoado, como nos filmes de suspense)
– É o calor.
(Bobagem! Todos sabemos como essa cena começa)
Pelo vão da porta, logo senti que era o frio disfarçado. Não a abri e nem quero que seja aberta, mas continuo em frente à maçaneta, vezenquando olhando pela fechadura. O frio, disfarçado de calor, me encara como uma criança triste, sentada no frio do viaduto, esperando a benvinda redenção. Sinto seu olhar de ódio desviado, falso ao mesmo tempo abatido, que me tenta a deixá-lo entrar novamente.
– Não. Já te perdoei por me perdoares, mesmo quando se vitimizava em suas próprias entranhas.
(Donde eu tanto me entrenhava…)
Por que retornar à minha vida assim, mesmo pedindo a devida licença? Por que ainda sente prazer em me atormentar, me fazer de bobo perante meus próprios olhos? Se você sempre olhava pra baixo quando conversávamos… Por que? Minha figura nunca foi austera, nunca foi assustadora, nunca foi fundo de mar. Fui teu cais, pois resvalei-me de meus mais castos mistérios, de meus mais belos acasos. Por você e por mim. Por isso mesmo acabou… Por eu estar ali, nu em pêlo, mesmo sem querer, sem minhas melhores mentirinhas.
Meus olhos estavam tão cheios de mim mesmo que não conseguiam olhar pra você? Era isso que você pensava, sempre pensou, eu sei. Isso me magoava, entristecia, matava um pouco a cada dia, pois percebendo meus olhos, você deixava de reconhecer os seus, que se perdiam numa ilusão vitimizada, que não conseguiam enxergar toda a maravilha refletida no espelho. O todo de sua divina obra, tua imagem refletida. Criação tua, só tua.
(Donde eu tanto me entrenhava…)
O que queres de mim novamente? Que além de deixar pra trás minhas mentirinhas, deixe pra trás também meus questionamentos? Que eu me remexa num túmulo de histórias passadas enquanto você se martiriza de um sofrimento que nunca sofreu? E se sofreu algum dano, não foi por tua própria causa, de teu olhar que não te olhava? Hoje, esses mesmos olhos que, segundo suas aspirações, pensavam só neles mesmos e no rosto em que se encaixavam, vêem com certa clareza toda aquela situação: tudo aquilo pra se fazer de vítima das situações cotidianas, pra me vestir de bicho papão perante seus amigos.
Plano traçado durante quanto tempo, quantos carnavais? Precisava? Fui tão mau assim? Passei dos meus próprios limites por insistência, creio. Mas, se passei, foi por você. E por mim. E pelas contas que contei. E por acreditar do fundo da alma que daria certo. E é por aí que errei e é por aí que hoje acerto: respeito a delicada ecologia de meus sentimentos, de meus mórbidos desejos. Sem ao menos sentí-los, sem ao menos desejá-los. Conselho: faça isso também com teus belos olhos…
(Donde eu tanto me entrenhava…)
O teu olhar, por fim, era de adeus. O meu, de esperança.
E sabe por que foi assim?
Por que meus olhos foram tudo que me sobraram. O resto todo era seu.
E hoje, quase tudo é meu novamente. Retornando em doses homeopáticas, em pequenas prestações, fragmentos de mim que se desgarraram de ti, que te esqueceram pelos cantos escuros das noites azuis, dos suspiros enevoados atrás da porta. Meu olhos e meu corpo querem ser de alguém que não você. Ainda bem!
Por isso pare.
Por isso repare.
Por isso não volte.
Por isso não revolte.
Sua tristeza nunca foi maior que a minha. Nem menor. Somos democráticos em relação ao sofrimento sofrido.
E se te amei pelo avesso, o erro foi meu e dos teus olhos.
Isso, porém, não faz de mim um crápula. Um inocente idiota, talvez. Nada de tão horrendo que justifique tuas ações.
Afinal, amar pelo avesso também é amar. Ou não é?
No mais, acabou, o frio se foi.
– Te perdoo.