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Mil razões, mil perdões

3 de Fevereiro de 2011

Para ler ouvindo Atrás da Porta e Mil Perdões.

Toc-toc.

– Quem bate?

(Desce o som. Vazio. Sobe aquele cenário escuro, aquele suspiro frio e enevoado, como nos filmes de suspense)

– É o calor.

(Bobagem! Todos sabemos como essa cena começa)

Pelo vão da porta, logo senti que era o frio disfarçado. Não a abri e nem quero que seja aberta, mas continuo em frente à maçaneta, vezenquando olhando pela fechadura. O frio, disfarçado de calor, me encara como uma criança triste, sentada no frio do viaduto, esperando a benvinda redenção. Sinto seu olhar de ódio desviado, falso ao mesmo tempo abatido, que me tenta a deixá-lo entrar novamente.

– Não. Já te perdoei por me perdoares, mesmo quando se vitimizava em suas próprias entranhas.

(Donde eu tanto me entrenhava…)

Por que retornar à minha vida assim, mesmo pedindo a devida licença? Por que ainda sente prazer em me atormentar, me fazer de bobo perante meus próprios olhos? Se você sempre olhava pra baixo quando conversávamos… Por que? Minha figura nunca foi austera, nunca foi assustadora, nunca foi fundo de mar. Fui teu cais, pois resvalei-me de meus mais castos mistérios, de meus mais belos acasos. Por você e por mim. Por isso mesmo acabou… Por eu estar ali, nu em pêlo, mesmo sem querer, sem minhas melhores mentirinhas.

Meus olhos estavam tão cheios de mim mesmo que não conseguiam olhar pra você? Era isso que você pensava, sempre pensou, eu sei. Isso me magoava, entristecia, matava um pouco a cada dia, pois percebendo meus olhos, você deixava de reconhecer os seus, que se perdiam numa ilusão vitimizada, que não conseguiam enxergar toda a maravilha refletida no espelho. O todo de sua divina obra, tua imagem refletida. Criação tua, só tua.

(Donde eu tanto me entrenhava…)

O que queres de mim novamente? Que além de deixar pra trás minhas mentirinhas, deixe pra trás também meus questionamentos? Que eu me remexa num túmulo de histórias passadas enquanto você se martiriza de um sofrimento que nunca sofreu? E se sofreu algum dano, não foi por tua própria causa, de teu olhar que não te olhava? Hoje, esses mesmos olhos que, segundo suas aspirações, pensavam só neles mesmos e no rosto em que se encaixavam, vêem com certa clareza toda aquela situação: tudo aquilo pra se fazer de vítima das situações cotidianas, pra me vestir de bicho papão perante seus amigos.

Plano traçado durante quanto tempo, quantos carnavais? Precisava? Fui tão mau assim? Passei dos meus próprios limites por insistência, creio. Mas, se passei, foi por você. E por mim. E pelas contas que contei. E por acreditar do fundo da alma que daria certo. E é por aí que errei e é por aí que hoje acerto: respeito a delicada ecologia de meus sentimentos, de meus mórbidos desejos. Sem ao menos sentí-los, sem ao menos desejá-los. Conselho: faça isso também com teus belos olhos…

(Donde eu tanto me entrenhava…)

O teu olhar, por fim, era de adeus. O meu, de esperança.

E sabe por que foi assim?

Por que meus olhos foram tudo que me sobraram. O resto todo era seu.

E hoje, quase tudo é meu novamente. Retornando em doses homeopáticas, em pequenas prestações, fragmentos de mim que se desgarraram de ti, que te esqueceram pelos cantos escuros das noites azuis, dos suspiros enevoados atrás da porta. Meu olhos e meu corpo querem ser de alguém que não você. Ainda bem!

Por isso pare.

Por isso repare.

Por isso não volte.

Por isso não revolte.

Sua tristeza nunca foi maior que a minha. Nem menor. Somos democráticos em relação ao sofrimento sofrido.

E se te amei pelo avesso, o erro foi meu e dos teus olhos.

Isso, porém, não faz de mim um crápula. Um inocente idiota, talvez. Nada de tão horrendo que justifique tuas ações.

Afinal, amar pelo avesso também é amar. Ou não é?

No mais, acabou, o frio se foi.

– Te perdoo.

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À exceção do amar

30 de Setembro de 2010

Para ler ouvindo The only exception, a única exceção à regra do Paramore.

Pé com pé, manso de tudo, desinteressado, braços frouxos, bornal jogado no ombro, respirou fundo, girou a maçaneta. Blasé.

Tirou os óculos escuros da avó, olhou pra esquerda, percebeu um olhar. Belos olhos. Conteve-se.

Sentou no corredor de cadeiras vazias, ouviu a palestra durante exatos dois minutos e trinta e sete segundos… Abriu o livro de cabeceira. Começou a devorar silenciosamente cada página, como se entrasse naquele mundo bandido, biográfico e dele fosse parte. E era, de certa forma: um pouco de louco, um pouco de herói, um pouco de místico, um pouco de renegado, muito de sonhador, assim como o amigo relembrado no livro, seu escritor favorito. Leu até sentir sede. Não queria se levantar e sair da sala, não queria ser percebido. Preguiça versus sede. Round 1. Fight!

Nem precisou sair do primeiro round: sede wins.

Ao abrir a porta, garganta seca e garrafa de plástico em mãos, avistou numa conversa a dois aquele belo par de olhos, que novamente o encaravam. Decidiu, meio a contragosto do raciocínio padrão, tirar o coração do automático, do sistema de defesa anti-vírus e como se levantasse de um trono todo empoeirado e cheio de teias de aranha, foi puxar conversa. Venerava esses acasos, esses pequenos momentos de mistério, de indecisão até levantar do próprio trono e sacudir a poeira; ao mesmo tempo que os temia. Tinha medo de todo esse processo, de se decepcionar, de não ser retribuído. Mas o fato é que deu as caras. E percebeu, além dos belos olhos, um leve, sutil, mas, ainda assim, grande sorriso. Para o bem de seu coração, que funcionava momentaneamente no manual, os olhos em comunhão com o sorriso indicavam ao raciocínio padrão, já todo despadronizado, a esperada retribuição, resposta mais que bem-vinda ao acaso e ao mistério que o moviam. Sem ter nem saber, retribuiu também com um belo olhar e um grande sorriso.

– Vamos fumar um cigarro?

– Não fumo nada com nicotina, mas te acompanho.

Risos.

O restante, de certa forma nada particular, é história, como dizem por aí. Se conheceram, se reconheceram, fizeram novos amigos, se tornaram amigos, compartilharam algumas noites, algumas manhãs e construíram uma pequena história. Uma grande epifania, na verdade, acompanhada de um quarto bagunçado, uma cama de solteiro, um edredom azul, um travesseiro molhado de suor, milhares de beijos de cinema e abraços tão apertados e entrelaçados que até um marinheiro se os visse sentiria vergonha por seus nós. Dois tímidos “eu te amo”, no final, vindos de ambas as partes e seguidos de outros beijos e abraços, agora de despedida.

Uma história clichê e nada particular. Isso se um deles, há muito tempo, não tivesse jurado nunca mais dizer, com tamanha precipitação, a expressão “eu te amo”, mesmo que ela fosse entremeada de um inseguro “também” e seguida de um sorriso amarelo. Para ele existia, e talvez ainda exista, certamente, um medo, um receio, uma dívida bastante viva com essa expressão: é forte demais, traz com ela muito de passado, de momentos que doem, doíam. E pode te derrubar, ou pior, derrubar alguém, como uma bala perdida. E o havia derrubado, certamente. E derrubado alguém, não sabia.

Pesadelo passado, retornou ao sonho presente.

Acordou…

Acordei, finalmente.

E ao acordar do ferimento a bala que havia sofrido há anos, acordei desse acaso, desse mistério, desse sonho em terceira pessoa, que nunca acontecia comigo. Até então. Acordei do sono que havia dormido tanto tempo, que me transmitia ausente esse tom de inexistência, de neutralidade, de terceira pessoa. Percebi, abruptamente, que em anos de sonho ao avesso, você foi um tipo de alvorecer, de despertar. Minha primeira quebra de juramento. Sem também, sem sorriso amarelo, sem medo, sem bala perdida, sem arrependimento.  E da próxima vez, vou me precaver pra não me preparar, pra não jurar, pra não esperar. Vou acreditar nessa mística particular dos nossos lábios, dos nossos abraços apertados, dos nossos corpos nus, das nossas noites e das nossas manhãs. Dos nossos sorrisos, nariz com nariz. Afinal, acaso é palavra de ordem e mistério sempre há de pintar por aí.

E, até então, você é dos meus melhores acasos. Dos meus melhores mistérios.

E minha breve e única exceção pro verbo amar.

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The hard core of Cheek to Cheek

20 de Janeiro de 2010

“Sempre da vida o mesmo estranho mal, e o coração a mesma chaga aberta.”

Florbela Espanca.

Era a primeira vez que avistava um ser mítico, de perto, de longe, não sabia. Os planos geográficos pareciam ter saído do chão como numa vertigem de um quadro surrealista. Teve certo medo num primeiro momento. Não sei se essa é a palavra mais correta, mas sentiu o coração disparar acelerado, um leve torpor correr pelo corpo, arrepios nos pêlos do braço, da nuca, da púbis. Deixou o cigarro cair. Sem querer. Sei…

Controlou instintivamente o olhar.

Num disfarce de olhos, observou sua orquídea selvagem dançando ao sol das três da manhã. Na verdade, sob as luzes amareladas e quentes de um bar abarrotado de gente, fumaça, embriaguez e sexo. Simulacros de alegria, pensou. Místico, se não fosse tão clichê.

O personagem mágico que arrepiara seus pêlos mais íntimos logo num primeiro relance, brilhava ao som dos sambas da vida, jogava o corpo aos meandros do partido alto, dispunha ao vento os cachos cor de mel, partilhava sorrisos largos de madrugada. De longe parecia um sentimento perfeito. Uma epifania de gestos e diálogos estranhos, um tanto nervosos, um tanto calmos, um tanto forçados, um tanto naturais. Era o equilíbrio nos desequilíbrios. Tinha sinceridade no olhar, acima de tudo. Isso que mais encantava. Isso que mais doía. Por isso da palavra medo, talvez.

Não podia ter, nem saber. Aliás, não deveria. Essa figura maravilhosa não podia ser sua. Não tinha cacife o bastante para lidar com a sinceridade, ainda mais do olhar. Nem tinha o pau tão doce assim para chegar chegando, para escancarar os muros do desconhecido, da fantasia.

Além do mais, não sabia quando partir, nem quando chegar. Não sabia nada de nada. Apenas sabia que não podia ter e ponto. Não podia criar uma relação, mínima que fosse, sabendo que tinha a possibilidade mais possível de partir. Ou de ficar, quem sabe?

Não, não e não. Nada de volubilidades esquizofrênicas, falou alto. Não podia ficar e não podia ter. Afinal, não sabia nada de sua vida, nem da vida de ningúem. Não sabia nem ao certo quais as intenções divinas daqueles cachos, nem as pretensões de seus sambas.

Só sabia dos encantos. E do corpo e do sorriso e dos cachos e dos requebros e do gosto pelos sambas.

Aproximou-se de ímpeto, com o cigarro firme entre os dedos. Parou no meio da roda de samba e olhou bem fundo nos olhos da criatura. Castanhos tão claros que, quando as luzes amarelas refletiam nas pupilas, ficavam esverdeados. Olhou fixamente durante alguns segundos, queria sentir a tal sinceridade.

Enxergou determinado espanto.

Natural, pensou: um bêbado para em sua frente e começa a te olhar como se fosse te devorar vivo, ali mesmo. Não sabia qual o próximo passo a seguir. Falar, dialogar, gritar, sair correndo, dar uma baforada no cigarro carcomido de suor ou continuar olhando até que alguém fizesse alguma coisa? Não precisou pensar muito.

De relance, sentiu os cachos se aproximarem de seu rosto, de sua orelha, seguirem até seu pescoço e subirem bruscamente até o centro de sua testa e pararem ali. Dois olhares fixos, colados um no outro. Dois olhos castanhos, dois olhos verdes. Parados ali, na finitude infinita do bar.

Primeiro se abraçaram, como se sentissem uma saudade tão imensa e intensa um do outro, de tudo que haviam vivido, de tudo que tinham para viver. Mas, detalhe. Ainda não tinham vivido nada, só a sensação do samba, dos cachos, dos pêlos e dos olhares.

Depois, como se fossem antigos amantes, se beijaram. Um beijo bonito, parecido com o de Amélie Poulain em Nino Quincampoix. Calmaria depois do tufão. Deram as mãos, se beijaram novamente, dessa vez como Audrey Hepburn e George Peppard em Bonequinha de Luxo. Só faltava o gato.  Olharam-se novamente, mas dessa vez com ares de reconhecimento, de sinceridade mesmo. Sorriram calmos, leves, estáticos enquanto o mundo desabava em samba.

Aliás, já não ouviam mais samba.

Eram Fred Astaire e Ginger Rogers dançando Cheek to Cheek. Não estavam envolvidos em plumas e paetês, mas eram, definitivamente, uma aura que transbordava energia e beleza em meio às hipocrisias e desapegos de uma noite suja.

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O fim da novela

15 de Novembro de 2009

garoto gordo

O que os olhos vêem é tão superficial, às vezes. E você?
Acredita só naquilo que seus olhos vêem?

Nada é real…

Perdemos tempo em uma sala de espera de consultório médico, lendo revistas antigas, enquanto um garoto gordo de boné vermelho nos olha com desdém. Você se sente um perdedor, um deslocado, assim como ele aparenta ser. Você lê sobre o final da novela que acabou há quatro anos atrás, enquanto ele, o garoto gordo, chupa um sundae de morango e te observa. Você se sente tão excluído e gordo quanto ele. Você se vê nele ou ele se vê em você?

Isso te incomoda… Os olhos estáticos se fixam na parede branca. Deixa de pensar no que aconteceu no último capítulo da novela que assistiu há quatro anos atrás.  Futilidades…

Aliás, fútil é o ser humano inconveniente e mórbido que convencionou que o garoto gordo é um um perdedor-deslocado-excluído. Porque? Por ser gordo, usar um boné vermelho e chupar um sundae de morango? E porque nos incomodamos tanto quando nos colocamos na mesma posição que o garoto gordo ocupa na escala de “vencedores”?

O garoto gordo poderia ser Jô Soares. Não é mesmo? Você pensa isso, talvez, pra não se sentir tão infeliz quando se coloca no mesmo patamar que o garoto gordo. Você encontra um gordo de sucesso… Maravilha!

Eis que chegamos ao ponto clímax da adiposa equação! Damos fama e dinheiro pro garoto gordo de boné vermelho e ele deixa de ser um perdedor-deslocado-excluído! Se torna um bobo da corte das elites… Mas será que isso é o melhor pra ele? O que será que ele quer da vida? Será que quer mesmo ser o Jô Soares? Ou o Faustão? Acho que não…

Acho que o garoto gordo de boné vermelho não quer dinheiro nem fama. Acho que ele quer continuar sua vida lambuzada de sundae de morango, observando os babacas que lêem revistas de quatro anos atrás em salas de espera de consultórios médicos, na tentativa de relembrar finais de novelas que não fazem a mínima diferença em sua vida.

Provavelmente, somos todos parecidos com o garoto excluído e gordo. Alguns por fora, a maioria por dentro. E, provavelmente, queremos ser o babaca que lê revistas velhas na sala de espera, só pra não ser o garoto gordo.

Às vezes nossos olhos são realmente muito superficiais e não vêem nada além da gordura do garoto. Talvez ele seja um cara bacana. Poderia ter sido seu melhor amigo na escola. Mas você preferia as futilidades dos “descolados” ao diálogo com os “deslocados”. A maioria normativa prefere.

O poder, ou a simples vontade de tê-lo, tapa nossos olhos com a normalidade estanque de tempos estranhos. E, assim, essa moral normativa cria os estigmas da puta, do viado, do drogado, do bizarro, do gordo… Dos perdedores-deslocados-excluídos. É sempre ruim ser minoria, que na verdade é maioria. É sempre bom sentir-se parte da maioria, que na verdade é minoria.

No final das contas, no frigir dos ovos e no bem da verdade, compartilhamos da mesma sala de espera e das mesmas revistas antigas. Do mesmo consultório médico e do mesmo desdém. Dos mesmos finais de novela que não lembramos e que não fazem a mínima diferença na nossa história.

Descolados ou deslocados, não interessa. Pra um virar o outro basta deslocar ou descolar duas pequenas letras… Nenhum deles é real. Nada disso é real. Nenhum deles precisa dessa realidade…

Afinal, todos nos escondemos por aí, em máscaras soturnas e empoeiradas de esperança, à procura de uma cura pras doenças que nos obrigam a permanecer em salas de espera de consultórios médicos, fantasiando finais de novelas em revistas antigas.