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The hard core of Cheek to Cheek

20 de Janeiro de 2010

“Sempre da vida o mesmo estranho mal, e o coração a mesma chaga aberta.”

Florbela Espanca.

Era a primeira vez que avistava um ser mítico, de perto, de longe, não sabia. Os planos geográficos pareciam ter saído do chão como numa vertigem de um quadro surrealista. Teve certo medo num primeiro momento. Não sei se essa é a palavra mais correta, mas sentiu o coração disparar acelerado, um leve torpor correr pelo corpo, arrepios nos pêlos do braço, da nuca, da púbis. Deixou o cigarro cair. Sem querer. Sei…

Controlou instintivamente o olhar.

Num disfarce de olhos, observou sua orquídea selvagem dançando ao sol das três da manhã. Na verdade, sob as luzes amareladas e quentes de um bar abarrotado de gente, fumaça, embriaguez e sexo. Simulacros de alegria, pensou. Místico, se não fosse tão clichê.

O personagem mágico que arrepiara seus pêlos mais íntimos logo num primeiro relance, brilhava ao som dos sambas da vida, jogava o corpo aos meandros do partido alto, dispunha ao vento os cachos cor de mel, partilhava sorrisos largos de madrugada. De longe parecia um sentimento perfeito. Uma epifania de gestos e diálogos estranhos, um tanto nervosos, um tanto calmos, um tanto forçados, um tanto naturais. Era o equilíbrio nos desequilíbrios. Tinha sinceridade no olhar, acima de tudo. Isso que mais encantava. Isso que mais doía. Por isso da palavra medo, talvez.

Não podia ter, nem saber. Aliás, não deveria. Essa figura maravilhosa não podia ser sua. Não tinha cacife o bastante para lidar com a sinceridade, ainda mais do olhar. Nem tinha o pau tão doce assim para chegar chegando, para escancarar os muros do desconhecido, da fantasia.

Além do mais, não sabia quando partir, nem quando chegar. Não sabia nada de nada. Apenas sabia que não podia ter e ponto. Não podia criar uma relação, mínima que fosse, sabendo que tinha a possibilidade mais possível de partir. Ou de ficar, quem sabe?

Não, não e não. Nada de volubilidades esquizofrênicas, falou alto. Não podia ficar e não podia ter. Afinal, não sabia nada de sua vida, nem da vida de ningúem. Não sabia nem ao certo quais as intenções divinas daqueles cachos, nem as pretensões de seus sambas.

Só sabia dos encantos. E do corpo e do sorriso e dos cachos e dos requebros e do gosto pelos sambas.

Aproximou-se de ímpeto, com o cigarro firme entre os dedos. Parou no meio da roda de samba e olhou bem fundo nos olhos da criatura. Castanhos tão claros que, quando as luzes amarelas refletiam nas pupilas, ficavam esverdeados. Olhou fixamente durante alguns segundos, queria sentir a tal sinceridade.

Enxergou determinado espanto.

Natural, pensou: um bêbado para em sua frente e começa a te olhar como se fosse te devorar vivo, ali mesmo. Não sabia qual o próximo passo a seguir. Falar, dialogar, gritar, sair correndo, dar uma baforada no cigarro carcomido de suor ou continuar olhando até que alguém fizesse alguma coisa? Não precisou pensar muito.

De relance, sentiu os cachos se aproximarem de seu rosto, de sua orelha, seguirem até seu pescoço e subirem bruscamente até o centro de sua testa e pararem ali. Dois olhares fixos, colados um no outro. Dois olhos castanhos, dois olhos verdes. Parados ali, na finitude infinita do bar.

Primeiro se abraçaram, como se sentissem uma saudade tão imensa e intensa um do outro, de tudo que haviam vivido, de tudo que tinham para viver. Mas, detalhe. Ainda não tinham vivido nada, só a sensação do samba, dos cachos, dos pêlos e dos olhares.

Depois, como se fossem antigos amantes, se beijaram. Um beijo bonito, parecido com o de Amélie Poulain em Nino Quincampoix. Calmaria depois do tufão. Deram as mãos, se beijaram novamente, dessa vez como Audrey Hepburn e George Peppard em Bonequinha de Luxo. Só faltava o gato.  Olharam-se novamente, mas dessa vez com ares de reconhecimento, de sinceridade mesmo. Sorriram calmos, leves, estáticos enquanto o mundo desabava em samba.

Aliás, já não ouviam mais samba.

Eram Fred Astaire e Ginger Rogers dançando Cheek to Cheek. Não estavam envolvidos em plumas e paetês, mas eram, definitivamente, uma aura que transbordava energia e beleza em meio às hipocrisias e desapegos de uma noite suja.