Posts Tagged ‘anjos’

h1

Chuva de lírios

10 de Agosto de 2009

Chuva de lírios

Passei esse final de semana assistindo filmes que, de alguma forma, fizeram parte da minha vida, do meu passado. Claro que influem ainda no presente e, provavelmente, influirão no futuro, mas, de qualquer forma, num plano específico, mais detalhado, esses filmes ficaram lá, guardados em algum lugar do meu passado.

E algumas características desse passado, num plano mais geral, pode-se dizer que “pelo ângulo como eu analiso e critico as coisas”, é igual ao presente e, provavelmente, vai ser igual no futuro. Meus métodos pra pensar e refletir sobre as coisas da vida parecem ser os mesmos de quando eu tinha doze anos: cheios de estratagemas, conjecturas, devaneios e fantasias.

Mas, enfim… Comecei as sessões com Magnolia, numa madrugada incendiária. O efeito foi o mesmo das outras três vezes que assisti: fiquei acordado até as nove da manhã, fantasiando milhares de loucuras. Coisas minhas, coisas da vida, coisas do filme. Sinas e sinais de uma viagem muito louca, que às vezes eu acho que só eu tenho, de tão colorida e estroboscópica que é. Sei lá. É estranho. Juro que tem vezes em que fecho os olhos pra dormir e começo a ver diversos caleidoscópios, de cores diferentes, berrantes, que giram na minha cabeça. Sou obrigado a abrir os olhos, fitar a escuridão durante alguns minutos e só daí fechar os olhos e tentar dormir novamente. Foi mais ou menos isso que aconteceu depois que assisti o filme pela quarta vez, mas eu ainda estava acordado.

No sábado assisti Secretária. Estava ainda meio estranho, lesado, sei lá. Mas mesmo assim foi uma experiência fantástica. Perceber o amor e o sexo com olhos mais ávidos e menos estereotipados. O sentido de coisas que num primeiro momento parecem infames, mas que, com o passar das reflexões, se tornam claras, aceitáveis, corriqueiras. Naturais, até. E é nesse momento, quando começo a naturalizar milhares de coisas que pra maioria das pessoas são bizarras, é que percebo o quanto eu mesmo sou bizarro, por me deixar enlouquecer por muitas dessas pequenas atitudes que inicialmente parecem infames e que depois se tornam naturais, pelo menos pra mim. Deve ser porque, pra sociedade, essas coisas realmente são infames e, geralmente, não se tornam naturais…

No domingo, pra aproveitar as pitadas de loucura que tinha visto nos dias anteriores, assisti Angels in America. Fui tentado a provar novamente de toda aquela atmosfera rebuscada e cheia de significados do filme-teatro, mas quase que instintivamente, o que me tentou mesmo foi a loucura dos personagens e suas relações frenéticas com espíritos, alucinações, anjos e mensageiros, enquanto que, no mundo real, se é que ele existe, vivem pra exorcizar determinados demônios.

Enfim… Acho que não precisava de tanto blá-blá-blá pra chegar a certas conclusões. Não é mais ou menos tudo isso que a gente faz todos os dias? Fantasia as coisas, pensa em amor, pensa em sexo e exorciza os demônios da vida?

Acho que a grande e fundamental diferença reside na forma como refletimos sobre tudo isso e não nos conteúdos propriamente ditos… Os referenciais são importantes também…

Pra mim, as referências não são os filmes, mas os devaneios que eles incitam…

E é isso que aprendo, a cada passo, a cada momento de loucura: a respeitar a delicada ecologia de meus delírios.

h1

café. cigarros. miçangas.

26 de Junho de 2009

senhora café

Andou uns dois quarteirões até chegar ao ponto de ônibus. Sentou-se no banquinho verde de madeira da praça da matriz, logo em frente ao ponto.

Precisava pensar… Aliás, não precisava, mas queria pensar um pouco no que iria fazer, pra não cair na trama desordenada dos atos precipitados. Se bem que precisava de um pouco de desordem em sua vida.

Num assalto pegou a mala, a gata, que dormia de barriga pra cima, e subiu no primeiro ônibus que viu passar. Coincidentemente ia até saída da cidade. Logo que subiu o primeiro degrau, lembrou-se de algo que não poderia deixar de fazer: despedir-se.

Pensou em tudo que iria falar, em tudo que precisava desabafar. Em tudo que tinha sofrido, em todas as noites mal dormidas, em todas as lágrimas que havia derramado. Precisava pensar nisso tudo novamente, pra dar a última cartada, pra esquecer tudo de vez e viver uma nova vida.

Chegou, finalmente, à Alameda dos Anjos. Olhou de cima pra baixo a figueira frondosa, com suas raízes imponentes rasgando o concreto afora. Avistou logo as escrituras acima das abóbodas ogivais que contornavam o portão de grades azuis: “Nós que aqui estamos, por vós esperamos”.

Adentrou o cemitério segurando firme no peito a convicção que há muito não sentia. Andou por todo o caminho de ipês amarelos até chegar ao túmulo de Salvador. Apesar das margaridas mofadas e da cera de vela espalhada pelos cantos úmidos, dava ainda pra ver a foto envelhecida e a escritura com os dizeres “Tudo transformou enquanto viveu”.

Hilda tinha tanto o que dizer, tanta coisa entalada na garganta, tanto sentimento pulsando, escorrendo pelas veias… Mas não. Conteve-se.

Você não me conheceu completamente. Talvez não fosse minha outra metade. Mas é certo que nos amamos. E muito… Isso é certo… Certíssimo…

Derramou uma lágrima só.

Voltou-se de costas ao túmulo no intuito de seguir seu novo caminho.

Um sopro de ar contido fez com que Hilda se arrepiasse. Parecia uma resposta de Salvador. Um acordo. Uma aprovação.

Sem querer deixou a caixa com a gata cair no chão. De súbito o animal, que dormia calmamente, correu assustado em direção a um beco cheio de entulhos próximo à saída do cemitério.

Hilda não se apavorou. Dirigiu-se ao beco e começou a chamar pela gata. Sentiu-se um pouco como Audrey Hepburn em Bonequinha de Luxo, mas sem desesperos. Ruborizou ao cogitar a possibilidade da chuva torrencial, do momento místico, do grande amor à espreita… Enquanto subia o som de Moon River num beijo apaixonado…

Desistiu da gata.

Deixou ali a caixinha de madeira com um recado: “Quem encontrar uma gata siamesa, de rabo cortado, com cara de fome, cheia de safadeza,  favor adotá-la.”

Antes de ir, resolveu deitar-se por alguns minutos ao lado de Salvador. Trocaram carícias de brincadeirinha, conversaram-se, amaram-se, sentiram-se pela última vez. Afinal, eram as últimas carícias de um casal feliz.

Nem cogitava Salvador que além de tudo que transformara em vida, havia tudo transformado após sua morte. E que enquanto as flores do ipê caíam, Hilda reviveu alguns bons anos. Pronta para viver os próximos.

Ao som de Moon River, fumando da piteira do tempo, deu-se conta de que aquele era certamente o último momento a dois.

O último adeus.