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A porta da geladeira

4 de Fevereiro de 2010

ou Tudo sobre minha geladeira

“Eu simplesmente posso dizer que não o escrevi: fui escrito por ele. Ao contrário de todos os outros, não seguiu nenhum seguro plano prévio. Eu simplesmente não sabia ao certo o que queria dizer ou contar. Para saber, foi preciso aceitar escrevê-lo meio às cegas, correndo todos os riscos.”

Caio Fernando Abreu,  Para Não Gritar.

Na geladeira, nada de nada: dois sucos de caixa, quatro garrafinhas de água, duas ou três maçãs, quatro cebolas pequenas, molhos para salada, nenhuma salada. Num flash cogitou entrar na geladeira, como Mary-Louise Parker em Angels in America; tentar alguma coisa nova, inovadora, vai que dá certo, pensou. Mas não tinha comprimidos de valium e, além do mais, não queria criar alucinações. Queria que as alucinações viessem até ele, como num sonho psicodélico que se transpõe pro plano material.

Gostava de pensar nas coisas, fritar os nervos com relativizações descabidas, suposições do-que-poderia-ser-ou-ter-sido-ou-vir-a-ser. Fantasiar um pouco a realidade sem graça, sei lá. Criar estratagemas que provavelmente não iria utilizar, por mais que desejasse. Isso porque tinha medo de ser sincero demais com as pessoas e com as coisas que gostava. Na verdade, tinha medo que o achassem bizarro. Afinal, ninguém tenta a boa sorte entrando numa geladeira quase vazia. Só a Mary-Louise Parker, claro. E ele. Ou não. Será?!

Nesse frigir dos pensamentos, lhe ocorreu uma dura e corriqueira reflexão: nunca iria encontrar ninguém que o amasse de verdade. Só amor não correspondido, coisa platônica. Tudo amor assim, daquele jeito ruim, que ninguém ou quase ninguém quer ter. Não sabia porque havia cogitado entrar na geladeira e logo após pensado nisso. Não havia correlação direta entre as duas coisas. Ou havia?!

Ficou triste e aflito sem saber o porque das coisas da vida e do mundo. Deu aquele aperto estranho no coração, um comichão nas pontas dos dedos. Tentou se concentrar na bizarrice dos pensamentos pra ver de onde tinha tirado tamanha e horrível constatação. Relembrou pequenas aflições, velhos amores, grandes paixões, altos astrais, altas transas, lindas canções. Tudo em questão de segundos, como se fossem flashs rápidos de uma câmera fotográfica, tiros de metralhadora. Visualizava amor em tudo e em nada ao mesmo tempo. Coisas, momentos e pessoas tão fluidas e ao mesmo tempo tão presentes que não tinha bases para continuar pensando e refletindo sobre. Não sabia o que pensar, na verdade. Tinha medo que aquela reflexão fosse verdadeira. Tinha mais medo ainda de não saber o que representava o sentimento amor, pois esta sim seria a  constatação real e verdadeira de que tudo aquilo que tinha vivido até abrir a maldita porta da geladeira teria sido em vão. Ou não!?

Talvez, tudo que viveu e aquele momento em que abriu a geladeira naquele domingo à noite, fossem um subterfúgio da vida, um aprendizado prévio pra que ele agora fosse mais sincero consigo e com os outros, tivesse menos medo, e conseguisse alcançar o amor que nunca havia alcançado. Mais ou menos aquela coisa de igreja, que diz que “num lampejo de consciência e verdade ele alcançou a luz e mudou de vida”. Ou era uma forma de dizer a si mesmo que era um verdadeiro bosta, uma merda ambulante e sem amores. Ou, ainda, que tudo era apenas uma grande bobagem, uma peça que seus pensamentos estavam pregando para assombrá-lo.

Realmente, não sabia o que eram esses pensamentos. E não sabia também o que considerava como sendo amor. Não sabia se o que havia sentido anos atrás se configurava enquanto. Não sabia mesmo. Aliás, não conseguia reproduzir esse sentimento agora, de frente com a geladeira aberta. Com isso, não sabia se já havia amado ou não e se já havia sido amado por alguém. Não tinha base pra comparação, entende?

Não, ninguém entende. Nem eu.

Mas o fato é que isso o frustrou absurdamente. Era a constatação mais feia de todas. Não sabia mais amar, ou pior, nunca soube, pois não conseguia reproduzir o que já havia sentido, não sabia nem por onde começar. Lembrava só dos arrepios, dos desejos, dos gemidos, dos vislumbres, dos abraços, dos beijinhos, dos carinhos sem ter fim. Lembrava de algumas coisas desse tipo. E isso já não era a livre manifestação do amor? Sei lá, pode ser de dor também, né?

Nunca se sabe. Tudo é tão difícil, tão estranho.  Preferiu pensar na concepção abragente e subjetiva de Vinícius. O amor é o carinho, é o espinho que não se vê em cada flor. É a vida quando chega sangrando aberta em pétalas de amor. Não queria mais pensar nisso, então, encontrou uma forma de se confortar. Nem oito nem oitenta. Nem amor, nem dor. Tudo é nada, nada é tudo. Everything is Everything, como dizia Lauryn Hill. Nada mais justo. Nada mais poético. Nada mais fugaz.

Tudo isso pra que, na real, as caraminholas continuassem ali, intactas, mesmo com todo o esforço de Vinícius de Moraes, Lauryn Hill, Mary-Louise Parker, o caralho a quatro.

Pior que o babaca só queria tomar um suco de manga. E acabou vendo que o coração estava tão vazio e frio quanto a geladeira.

Sorte que a porta ainda continua aberta.

Existem coisas na vida que são fruto de uma sinceridade mórbida, como esse texto. Escrevi em terceira pessoa por acreditar linguisticamente que essa seja uma forma “bonita” de dizer as coisas. Mas falo de mim mesmo, sem hipocrisias e sem arrependimentos, na tentativa de ser alguém mais feliz e completo. E, por mais que esse não seja um dos textos mais bem elaborados gramaticalmente e um tanto quanto difícil de entender numa primeira leitura, fico feliz por tê-lo escrito. Bêbado e de ímpeto, claramente. Mais feliz ainda por tê-lo postado. Bêbado e de ímpeto, claramente. Pois representa aquele sentimento de “consciência para ter coragem”, extremamente clichê, pelo menos pra mim, que não sinto há muito tempo. Vejo como um sinal. Uma pequena luz, mínima que seja. Uma porta aberta. Sinal de novos tempos, novos prólogos, novas histórias, novos finais. Esperança, enfim.

3 comentários

  1. interessei pelo título.saboreei o texto. geladeiras abertas nos fazem pensar,sempre!


  2. ahhh, que saudades daqui!!!

    Famoso Caio!


  3. Terra! Realmente precisei o ler duas ou três vezes, mas não por ser mal construido gramaticamente, isso não o é. O li várias vezes porque as entrelinhas são muitas, e não fui capaz de capta-las na primeira leitura. Seu estilo é muito único Terra! Sempre me delicio lendo os seus textos. Um sorriso não se abstêm de fugir dos meus lábios. Grande abraço!



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