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Uma vida em branco e branco.

27 de Março de 2010

– Abraça tua loucura antes que seja tarde demais.

O marinheiro, Caio Fernando Abreu.

Havia se apaixonado milhares de vezes por milhares de pessoas. E milhares de vezes pela mesma pessoa. Mas isso não importava mais. Nada disso importava mais. A vida se tornara um caleidoscópio vazio de cor. Sem vidro, sem cor, sem espelho, sem mão, sem girar, sem nada. Sem absolutamente nada que fizesse sentido. Mas pra que sentido?, pensou. Tanta gente vive por aí, sem precisar de nada disso. Perambulando. Feliz da vida. Será? Felicidade por fora, tristeza por dentro, pensou. Como ele.  Talvez. Como uma casa bonita, pintada, adornada por fora e sem nada por dentro, cheia de paredes descascadas e rachaduras expostas. Como sua casa, como sua vida. Talvez.

Tinha sede.

Saiu do chão. Parou de olhar o teto branco do quarto. Levantou-se com seus pés sujos de rua e foi pra cozinha. Molenga. Cheio de si, cheio de nada, vazio de tudo. Bebeu água na tentativa de se encher. Queria mesmo é encher a cara, isso sim. Mas não tinha bebida, não tinha dinheiro, não tinha carro, não tinha casa própria, não tinha mulher, não tinha filhos, não tinha emprego. Não tinha coragem.

Tinha só a cabeça cheia de pensamentos e vazia de ações. O corpo ao mesmo tempo que queria, não conseguia. Pensou em pensar algo, mas ficou com preguiça, já que pensar era a única coisa que fazia há tempos.  Lembranças de um passado remediado, mas infectado eternamente. Como alguém com HIV. Toma coquetel daqui, remédio dali, AZT acolá, mas continua com a maldita chaga aberta ali, dentro de si, sem cura, sem culpa, sem dó. 

Decidiu correr. Pra esquecer qualquer coisa. Seja lá o que fosse. Correu de um lado pro outro da sala. Correu, correu, correu, correu, correu. Até ficar suado e ofegante. Parecia ter tomado um banho de chuva ou entrado no chuveiro com roupa. Estava só de camiseta e cueca brancas. Parecia completamente molhado.

Subiu pro quarto novamente. Fechou a porta. E esperou. Deitado no chão, de camiseta e cueca, todo suado, olhando um ponto fixo no teto branco. Ouvia os sons da rua. Meninada pulando corda, jogando amarelinha, pique-esconde, pique-pega, plic plic, ploc ploc, pluct, plact, zum. O som do churrasco dos vizinhos também entrava pela janela entreaberta. Gente batendo talher em prato, conversando alto, uma mulher gritando, Lady Gaga desafinada com um batidão qualquer por trás. Trilha sonora de um dia feliz, clichê e global, pensou. Durante muito tempo permaneceu ali. Na espera, na escuta. Não queria olhar e nem ser olhado da janela. Não queria que a felicidade mecânica, monstruosa, lá de fora, interrompesse seu momento de. Não sabia o que. Que momento era aquele? Momento depressão? Momento fossa? Momento Abissal? Que palavra bonita abissal, não é? Mas momento Amy Winehouse é que não era. E não via aquele ali como um dos supracitados momentos da vida. Estava fazendo aquilo que sempre fazia, depois do ocorrido. Não fazia nada. Isso mesmo. Não fazia absolutamente nada. Não se deprimia, não ficava na fossa, não caía nos abismos do coração, mesmo porque não valia mais a pena. Só ficava deitado, de camiseta e cuecas brancas, olhando pro ponto fixo no teto branco, enquanto pensava na vida branca que levava, na vida colorida que tinha levado, no que havia lhe ocorrido de marrom-cor-de-merda e no que haveria ainda de acontecer, cor vazada, não-cor. Mais nada. Esperava, somente. Sabia que tinha de esperar. Não sabia o que ou quem, mas tinha que esperar. Ali, deitado, pensando. 

O suor da correria do desatino já tinha secado há muito tempo. A noite começava a imperar. Súbita, majestosa, de um azul latente que chegava a doer nos olhos. E no coração. As estrelas, envoltas de uma luz magnífica, pareciam ter ganhado um contraste a mais em algum programa de edição, coisa parecida com Tim Burton. Ele não viu nada. Continuava deitado. Na espera, na escuta.

Até que ouviu o alguma coisa bater na janela, como uma pedrinha jogada em direção ao vidro. Pensou naqueles filmes quando o menininho joga uma pedra na janela da menininha pra fazerem algo proibido, correrem algum risco em alguma aventura com algum amor com algum afeto com algum carinho quem sabe. Levantou a cabeça pra olhar. Nada. Aparentemente. Voltou a deitar.

Ouviu o barulho novamente. E novamente. E novamente.

Daí começou a ficar apreensivo. Mas não apreensivo de preocupado. Não. Apreensivo pra saber qual seria o próximo passo. Ou se ficaria só naquelas batidinhas na janela. Estava curioso, na verdade. Isso mesmo. Curiosidade. Há quanto tempo não sentia? Ouviu outro barulho. Dessa vez mais brusco, como se alguém subisse do chão até a janela do quarto, no segundo andar. Como se alguma coisa se rastejasse. Levantou a cabeça novamente. Uma luz verde começou a aparecer pela janela. Cada vez mais forte, mais clara. Estranho não sentir medo em momento algum. Estranho não pensar em etês-vampiros-duendes-lobisomens-jason-freddy-krueger-samara-seven-days-galinhas-pretas-de-macumba ou qualquer coisa do tipo.

Sentia curiosidade. E agora esperança. Uma esperança que não sentia há tempos. Dias, anos, meses, séculos talvez.

A luz adentrou completamente o quarto branco e iluminou o teto branco, o ponto fixo no teto branco, a camiseta e a cueca brancas. Iluminou-o todo. Dos pés à cabeça, do cóccix até o pescoço. Foi tomando forma. Transformou-se na mãe, no pai, nos familiares, nos amigos, nos amores. Transformou-se em todos que de alguma forma tocaram sua vida. Transformou-se em seu último abandono. Em sua última desilusão. Sob essa forma, a luz transmutada em anjo-bom-anjo-mau lhe disse:

– Abraça tua loucura antes que seja tarde demais.

Lembrava dessa frase. Lembrou de Caio, lembrou do marinheiro. Lembrou do homem na casa de retalhos coloridos e da rua a correr. Lembrou do navegar. Pensou em chorar, mas achou muito clichê. E a luz sabia disso. Sabia disso tudo. De sua família, de seus amigos, de seus amores, de seu maior amor, de sua desilusão maior, de sua vida partida em duas. Estava ali. Sabendo de todos os seus movimentos. Antigos, presentes e futuros. De todos os seus pensamentos. Possíveis angústias. Possíveis alegrias.

Olhou para a luz, que sorriu. Quis beijá-la, quis possuí-la. Mas o convite era para abraçá-la.

Abraçou-a. Abraçou sua loucura transmutada, sabendo que isso só podia ser uma loucura. Diferente do homem de Caio que saiu pela rua afora, esse realmente abraçou a loucura e se viu livre ao seu lado.

– Como Peter Pan ou Super-homem. Não importa. Salve-me. Venha e me salve. Desse bando de loucos, que, como eu, acham que nunca vão amar ninguém.

As luz foi se desfazendo, sorrindo, gargalhando, na verdade, retornando de onde tinha vindo. Saía pela janela afora. Ele foi seguindo o fluxo, lento, harmônico, leve. Via todas as formas se transmutarem novamente, de trás pra frente, como num filme que volta rápido na fita. O último e maior amor, os amores anteriores, os amigos, os familiares, o pai, a mãe. Ele mesmo. Cada um com sua calma, cada um com sua culpa. Como se estivesse se vendo num espelho luminoso, como se um holograma, um espírito dele mesmo estivesse na sua frente, sorriu para si mesmo, se deu um beijo no rosto.

– A dor acabou. Vai. Estrela, estrela. Não és mais só. Não sofres mais. Não és mais parte. És todo.

E a luz verde se foi, em vários pontos luminosos, pequenos, frações, que vistas de baixo, lá em cima, formavam um sorriso. O sorriso do gato de Alice, envolvendo a lua minguante, no seu céu de contrastes luminosos. De Tim Burton.

E entre mortos e feridos, dessa brincadeira óbvia de um mais um que dava dois, ele e a loucura saíram.

Sãos e salvos.

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A casa e a estrada

10 de Novembro de 2009

Casa e Estrada

Ou “Hora de voltar”

Para ler ouvindo Winding Road, de Bonnie Sommerville, parte da trilha sonora de Garden State, que me inspirou a escrever essas coisas sem sentido…

Aja estranhamente sempre, no intuito de ver a vida através dos olhos de um lunático. Faça coisas que sua imaginação diz serem únicas, como se fosse a primeira vez que um ser humano as realiza sobre a face da terra. Saboreie o bizarro na tentativa de sentir-se novo, renovado, único e especial.

Não se mova.

Fique inerte por alguns instantes como se fosse desmaiar, só pra dar aquele suspiro cansado ao final da trama que você mesmo criou enquanto a fantasia deprimente de desfalecer passava pela sua cabeça.

Não entenda o que os outros querem dizer pra você com um simples olhar. Desfrute sempre de um bom diálogo, mesmo que monossilábico e cheio de momentos ininterruptos de um silêncio agoniante, pois além do olhar existe a palavra, assim como existe a pergunta acima de qualquer resposta. É o que importa: a existência dos símbolos que criam os laços e não os laços por si sós.

Sinta-se, pelo menos uma vez na vida, em um clipe de música indiana onde todos dançam e fazem sexo loucamente, enquanto você observa tudo com olhos atentos e calmos, em câmera lenta. Feche-os nos exatos momentos em que sentir um prazer orgásmico correr pelo seu corpo, como uma chama de pavio que se alastra dos dedos dos pés até o fim da nuca. Não se mova. Deixe os corpos se movimentarem por você. Só nesse pequeno instante perdido no tempo. Onde a música toca lentamente e os dançarinos e dançarinas do sexo se embriagam numa rapidez lancinante, que faria até o mais cético dos católicos fervorosos trepidar de prazer. E você ali, parado. Calmo, convicto, orgásmico… Estático a criar fantasias pagãs.

Conheça-se e reinterprete-se através dos olhos dos outros, daqueles que te amam ou possam vir a te amar um dia. Ou uma vida inteira… Quem sabe?

São aquelas estranhas sensações de encontro que não necessariamente precisam terminar em despedida. Não tão cedo. Não sem choro. Não sem perda. Não, nunca foi fácil pra ninguém. Mas quem disse ou escreveu que deveria ser assim ou assado? Afinal, existem sensações que mesmo estranhas ou tristes não deveriam deixar de existir, como a saudade.

Tudo isso representa aquele encontrar-se de que tanto falo. Em vários personagens e situações. É aquele fantasiar das coisas, aquela brincadeira de travestí-las de uma mística particular e única, por isso tão especial. É o prazer de sentir-se completo e concreto nos outros, naqueles que te amam e vão te amar pela vida inteira, mesmo que só em fantasia…

Afinal, a chuva continua caindo. A estrada continua nos chamando. O oceano continua com a mesma imensidão. O café com o mesmo gosto. O travesseiro com o mesmo cheiro. A mesma cama desarrumada…

O que muda com o tempo é a maneira como sentimos a vida e o mundo. Muda a cor do pensamento.

E porque caminhamos por tanto tempo? E porque procuramos tanto e tanta coisa? E porque nos fantasiamos de sonhos e realidades?

Pra achar o caminho de casa.

Acredito eu. Acredita você. Acreditamos nós.