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Próxima estação: Liberdade

26 de Março de 2010

 

Fanatismo

Minhálma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és se quer razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida…
Passo no mundo, meu amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

“Tudo no mundo é frágil, tudo passa…”
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio do Fim!…”

Florbela Espanca

As primeiras semanas em São Paulo me fizeram bem. Acho. Parece que me tornei outro. Completamente diferente daquele que era antes, mas ao mesmo tempo igual, mais igual que nunca, mais eu mesmo em mim mesmo, na verdade. Há tempos não sentia essa coisa contraditória, mas gostosa, misteriosa, cheia de vida, de experimentar de novos rumos, de novas gentes, de novos olhares.

Logo na primeira semana de vislumbres na selva de pedra, ainda me acostumando com os hábitos da megalópole, como pegar metrô, ônibus, andar pra lá, andar pra cá, conhecer lugar daqui, canto dali, gente de acolá, fiquei surpreso com uma sensibilidade sutil, que não esperava encontrar na cidade grande, em meio a tanta pedra, tanto prédio, tanto arranhacéu.

Num final de semana que estava sozinho, sentado num dos bares-restaurante da Liberdade, bairro onde me instalei durante minhas primeiras semanas, na casa de uma amiga muito querida, fui logo pra pista de sushis, nigiris e outras comidas orientais e comecei a me servir. De início não reparei nenhum movimento fora do normal, nenhum olhar desviado, nada de causar comoção. Entrei na fila para pesar o prato de sushis e daí reparei que uma garota me olhava. Devia ter cerca de vinte anos, cabelos ruivos, olhos pintados, nariz pequeno e arrebitado. Bonita.

Sentei-me numa bancada e comecei a pensar no que faria aquele dia. Poderia ir ao MASP, ao cinema ou até mesmo perambular pela feirinha que acontecia ali mesmo. Tinha o dia livre pra vagabundear. Foi nesse engano dos pensamentos que aconteceu. A garota ruiva de olhos pintados encostou levemente a mão direita em meu ombro, olhou com certa timidez nos meus olhos e disse:

– Até mais…

E colocou uma pequena comanda ao lado do meu prato. Achei estranho, mas sorri, antes que ela desse as costas e partisse rua afora, através das barraquinhas da feira. De súbito abri o papel e lá estava escrito seu e-mail. Confesso que ruborizei, e logo depois dei uma gargalhada, sozinho, sentado na bancada, com um nigiri de salmão entre os hashis.

Pretendia conversar com ela, nem que fosse pra saber quem era, o que fazia, que tipo de música gostava. Coisas banais, desse tipo.

Mas, no fim das contas, acabei não fazendo nada. Não tinha internet, não tinha tempo, não tinha apartamento. Tinha apenas alguns amigos de longa data, uma mochila cheia de roupas sujas, um colchão inflável, muita esperança e pernas pra bater.

Dias depois, como sempre, e já acostumado com meu trajeto diário, desci na estação Paraíso e logo entrei num trem em direção à Vila Madalena, a fim de ver o famigerado apartamento da rua Nelson Antônio. Aquele, com o quarto esquizofrênico.

Ao abrir as portas do trem, me deparei com uma frase de Florbela Espanca, trecho de Fanatismo: E, olhos postos em ti, digo de rastros: “Ah! Podem voar mundos, morrer astros, Que tu és como Deus: Princípio do Fim!…”. Fiquei ali, parado, lendo, relendo, lendo novamente e denovo aquela frase. Lembrei da vida de antes, dos amigos de outrora, das coisas que, de uma forma ou de outra, deixei pra trás. Enxerguei a vida de agora, sem olhar pros lados, só no pensamento, e não vi quase nada, só algumas conversas, alguns encontros e algumas despedidas. Não pensei nada de futuro.

Comecei a chorar. Ali mesmo, no metrô, de frente com Florbela Espanca.

Um choro leve, sem expressão evidente, sem mexer os músculos da face. Apenas algumas lágrimas solitárias, que saíam despercebidas. Não sabia se era saudade, se era desencanto, se era esperança, se era emoção ou se era simplesmente Florbela Espanca me espancando. Só sei que chorei, com os olhos fixos na frase. Saí do mundo, de qualquer mundo que pudesse existir. Não importava o passado, o presente e muito menos o futuro. Durante aqueles dois, três minutos, imperava Florbela, suas e minhas sensibilidades. Nem me dei conta de que o tempo passava. Aos poucos fui recobrando os sentidos, até que veio a voz mecânica.

– Próxima estação: Consolação.

Reparei que uma senhora se levantou e ficou ao meu lado, lendo a frase junto comigo. Provavelmente deve ter olhado pro lado e achado estranho um rapaz barbado e inexpressivo, todo choroso em frente à frase de metrô. Ela leu, olhou pro meu rosto e saiu pela porta, que já estava aberta em frente às letras garrafais: Con-so-la-ção.

Quando a senhora desceu da estação, observei-a saindo e, de súbito, olhei pro outro lado. A menina de cabelos ruivos e olhos pintados me observava e também descia, junto de uma amiga. Fiquei estático, com os olhos marejados, olhando fixamente pra ela, enquanto descia, desviando o o tímido olhar. Ainda me deu uma olhadela até que a porta se fechasse e desaparecesse completamente da minha vista.

Confesso que fiquei extasiado. Tinha até me esquecido de tudo que havia pensado quando li a frase no metrô. Na sexta maior cidade do planeta, dois encontros inusitados com a mesma conhecida-desconhecida. Provavelmente ela estava ali durante todo o trajeto e, quem sabe, descido comigo na mesma estação, me observando, pensando em como era estranho me ver chorar ou comer sushi. Ou não, talvez não pensasse em nada. Talvez só gostasse de me observar com seus olhos castanhos pintados a la Amy Winehouse. Era, de toda forma, um amor particular, um pequeno fantasma amoroso, que surgia e ressurgia em momentos inusitados. Enfim… Aconteceu…

Em um outro momento chorei ao ler Florbela Espanca dentro do metrô, pouco tempo depois desse estranho ocorrido. O choro era o mesmo, sem expressão. Eram quase sete da manhã, e tínhamos acabado de sair de um inferninho chamado Sarajevo, na Augusta. Estava muito bêbado e acompanhado de uma amiga também louca. Não me lembro da frase, do momento e de quem estava em volta. Mas lembro que pensei novamente nas mesmas coisas que havia pensado quando chorei da primeira vez e, dessa vez, pensei também em Consolação, em Augusta, em Angélica, em Madalena, em Maria, na senhora que lia a frase comigo e na menina de cabelos ruivos e olhos pintados. Talvez elas tivessem um desses nomes, quem sabe, quem iria de saber? Não sei. E não sei se quero saber. Prefiro deixar que a mística desses dias de calma loucura um dia me digam, ao conversarem comigo, me abraçando nos hábitos que nunca são hábitos dessa cidade tão maravilhosa, tão acolhedora e sempre tão louca. Extremamente louca. Assim como minha amiga, que me consolava, querendo saber o porque do choro, da vela e da fita amarela. Sem saber ela que tudo aquilo era tristeza misturada com felicidade, equilíbrio com loucura, medida sem medida, que de vez em quando extrapola, sem ter nem saber. Que tudo era princípio do fim, que tudo era Deus, sempre.

Ficamos nos falando aos poucos, aos solavancos até descer, escutando a voz baixinha do maquinista, que dizia:

– Próxima estação: Liberdade.