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À exceção do amar

30 de Setembro de 2010

Para ler ouvindo The only exception, a única exceção à regra do Paramore.

Pé com pé, manso de tudo, desinteressado, braços frouxos, bornal jogado no ombro, respirou fundo, girou a maçaneta. Blasé.

Tirou os óculos escuros da avó, olhou pra esquerda, percebeu um olhar. Belos olhos. Conteve-se.

Sentou no corredor de cadeiras vazias, ouviu a palestra durante exatos dois minutos e trinta e sete segundos… Abriu o livro de cabeceira. Começou a devorar silenciosamente cada página, como se entrasse naquele mundo bandido, biográfico e dele fosse parte. E era, de certa forma: um pouco de louco, um pouco de herói, um pouco de místico, um pouco de renegado, muito de sonhador, assim como o amigo relembrado no livro, seu escritor favorito. Leu até sentir sede. Não queria se levantar e sair da sala, não queria ser percebido. Preguiça versus sede. Round 1. Fight!

Nem precisou sair do primeiro round: sede wins.

Ao abrir a porta, garganta seca e garrafa de plástico em mãos, avistou numa conversa a dois aquele belo par de olhos, que novamente o encaravam. Decidiu, meio a contragosto do raciocínio padrão, tirar o coração do automático, do sistema de defesa anti-vírus e como se levantasse de um trono todo empoeirado e cheio de teias de aranha, foi puxar conversa. Venerava esses acasos, esses pequenos momentos de mistério, de indecisão até levantar do próprio trono e sacudir a poeira; ao mesmo tempo que os temia. Tinha medo de todo esse processo, de se decepcionar, de não ser retribuído. Mas o fato é que deu as caras. E percebeu, além dos belos olhos, um leve, sutil, mas, ainda assim, grande sorriso. Para o bem de seu coração, que funcionava momentaneamente no manual, os olhos em comunhão com o sorriso indicavam ao raciocínio padrão, já todo despadronizado, a esperada retribuição, resposta mais que bem-vinda ao acaso e ao mistério que o moviam. Sem ter nem saber, retribuiu também com um belo olhar e um grande sorriso.

– Vamos fumar um cigarro?

– Não fumo nada com nicotina, mas te acompanho.

Risos.

O restante, de certa forma nada particular, é história, como dizem por aí. Se conheceram, se reconheceram, fizeram novos amigos, se tornaram amigos, compartilharam algumas noites, algumas manhãs e construíram uma pequena história. Uma grande epifania, na verdade, acompanhada de um quarto bagunçado, uma cama de solteiro, um edredom azul, um travesseiro molhado de suor, milhares de beijos de cinema e abraços tão apertados e entrelaçados que até um marinheiro se os visse sentiria vergonha por seus nós. Dois tímidos “eu te amo”, no final, vindos de ambas as partes e seguidos de outros beijos e abraços, agora de despedida.

Uma história clichê e nada particular. Isso se um deles, há muito tempo, não tivesse jurado nunca mais dizer, com tamanha precipitação, a expressão “eu te amo”, mesmo que ela fosse entremeada de um inseguro “também” e seguida de um sorriso amarelo. Para ele existia, e talvez ainda exista, certamente, um medo, um receio, uma dívida bastante viva com essa expressão: é forte demais, traz com ela muito de passado, de momentos que doem, doíam. E pode te derrubar, ou pior, derrubar alguém, como uma bala perdida. E o havia derrubado, certamente. E derrubado alguém, não sabia.

Pesadelo passado, retornou ao sonho presente.

Acordou…

Acordei, finalmente.

E ao acordar do ferimento a bala que havia sofrido há anos, acordei desse acaso, desse mistério, desse sonho em terceira pessoa, que nunca acontecia comigo. Até então. Acordei do sono que havia dormido tanto tempo, que me transmitia ausente esse tom de inexistência, de neutralidade, de terceira pessoa. Percebi, abruptamente, que em anos de sonho ao avesso, você foi um tipo de alvorecer, de despertar. Minha primeira quebra de juramento. Sem também, sem sorriso amarelo, sem medo, sem bala perdida, sem arrependimento.  E da próxima vez, vou me precaver pra não me preparar, pra não jurar, pra não esperar. Vou acreditar nessa mística particular dos nossos lábios, dos nossos abraços apertados, dos nossos corpos nus, das nossas noites e das nossas manhãs. Dos nossos sorrisos, nariz com nariz. Afinal, acaso é palavra de ordem e mistério sempre há de pintar por aí.

E, até então, você é dos meus melhores acasos. Dos meus melhores mistérios.

E minha breve e única exceção pro verbo amar.

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24 parágrafos

9 de Setembro de 2010

ou Da janela do quarto.

Vinho e cigarros. Vinho e cigarros. Vinho e cigarros…

Fecho os olhos e tento lembrar. Bem apertado.

Como começa essa história?

Lembrava ontem, hoje não lembro mais.

Merda…

Tinha lua, tinha gato, tinha árvore, tinha recados, tinha uma mesa cheia de porcarias, um edredon sujo.

Merda…

Acordei por volta das cinco ou seis da tarde com o vento. Não lembro que hora fui dormir. Só sei que já era noite. A árvore quase que totalmente depenada ainda jorra pela janela pequenas folhas amareladas no meu edredon azul. Tipo de frio. Árvore filha-de-um-puta-mal-paga, sujou todo meu edredon com essas merdas de folhinhas amarelas. E como tirar essas merdinhas amarelas do trilho da janela, da beirada do pé da cama, do chão do quarto todo? Não sei bem o que faço por aqui, deitado, friorento, tentando dormir um sono que não existe enquanto todo o mundo está acordado. Às seis da tarde…

Lembrei. É dia de comemorar. Aliás, é véspera de comemoração.

Acendi um cigarro logo que levantei. Fui pra beira da janela, coloquei Beauty is within us pra rolar, som de Scott Matthew. Onde ouvi isso a primeira vez? Não, não é de Shortbus. Acho que é de Ghost in the Shell, mas não tenho a máxima certeza, nem a mínima vontade de pesquisar. Deixei rolar, fácil assim, afinal, a beleza está dentro de todos nós, é como uma rosa que está pra desabrochar e blá blá blá blá. Só quero ouvir uma música que dê pra chegar até o meio do cigarro, depois escolho outra, aleatoriamente pré-requisitada, pra outra metade. Psychedelic Soul, mais do mesmo. Antes que o cigarro terminasse senti uma vontade quase que irrefreável de encostar os lábios na cantoneira de metal da janela. De segurar firme as mãos na parede ao lado da janela. Como se agarrasse alguém, como se aquele enconstar de lábios contra o metal e de mãos contra a parede fossem um simulacro daquilo que eu mais desejava durante esse tempo todo de sono, sonho e cigarro.

Uma marca quase imperceptível de respiração ofegante foi desaparecendo lentamente da superfície metálica, enquanto a chama do cigarro se esvaia e os últimos tragos estavam por vir.

Não tinha muito o que comemorar, pensando bem, analisando minha atual situação de desprendimento com o mundo e de literal agarramento com a parede do quarto e com o metal da janela.

Parei de pensar. Não há pra onde fugir, não há contra o que ou quem lutar. Não existem razões, nunca existem, não é mesmo? Por que pensar, então? Melhor: em que pensar? Na situação que acabou de acontecer ou nas situações que já aconteceram antes dessa, muito parecidas por sinal?

Não há nada em que pensar.

Vesti uma roupa, peguei uma blusa de frio, calcei as havaianas e saí. Meio sem rumo, creio. Precisava comer. Comprei uma pizza, metade moda da casa, metade frango com catupiry, uma coca-cola, vi algumas pessoas, não olhei nenhuma no rosto, fui até à padaria, comprei pão, presunto e queijo, vi mais algumas pessoas, não queria olhar em rosto nenhum, andei alguns metros, merda, voltei à padaria, comprei um maço de cigarros, este produto contém mais de 4.700 substâncias tóxicas, e nicotina que causa dependência física ou psíqui…, saco, nem se pode comprar um pão em paz!

Não. É proibido comprar pão.

Voltei lento pra casa. Acompanhava o passo não-passo dos gatos preguiçosos que habitam as ruas desertas de feriado. Avistei alguém fumando, cigarro de filtro amarelo, enquanto esperava o cachorro, um poodle branco mais que horroroso, fazer as necessidades noturnas. Tanto a tarefa quanto o cigarro pareciam não ter fim, tanto que me acompanhou com os olhos disfarçados de boné até minha chegada em frente ao portão. Walking after you, Foo Fighters, tocou baixinho em minha cabeça. Estranha fantasia.

Subi a escadaria, tomado pelas paredes e pelas vigas de metal, até o terceiro andar. Passei pela velha porta branca, pela porta de mogno, pela porta de Dona Nena, avistei o tapete colorido, bem-vindo, entrei. I’m on your back. Barulho de chuveiro, adoro água, doce, de preferência, por favor. Pus a pizza na mesa, o pão na cozinha, os frios na geladeira, o maço de cigarros perto da janela da sala, junto do cinzeiro. Pratos na mesa, talheres também, condimentos idem. Comemos, conversamos, olhei pouco para os lados. Fui pro quatro, fumei uma metade ouvindo 20 anos blues e a outra, Batucada da vida, ambas de Elis.

Meia-noite. Meio-cigarro. Meio-apático. Toca o telefone.

Parabéns! Abraço! Te amo muito! Sinto sua falta! Queria você por aqui! Agora você já tem a nossa idade! (risos, não meus, até então).

A partir daí, e só daí, comecei a lembrar. Comecei a desprender alguns sorrisos, pequenos que fossem. E fui me lembrando de coisas, que talvez já não façam mais parte de mim, não sei. Lembrei que sempre tentei ser um cara legal. Lembrei que tenho família e amigos e que os amo muito. Lembrei que já fiz coisas das quais me orgulhei com força. Lembrei, principalmente, que existem formas de lutar e lugares onde resistir. Kamchatka. Lembrei de alguém que, despercebidamente, passou pela minha vida. E espero que volte. Lembrei de mim. E essa foi uma boa lembrança.

Cantei É com esse que eu vou e Só tinha de ser com você em voz alta, enquanto saía de casa, enquanto esperava o ônibus, enquanto andava pelas ruas do centro. Daí em diante, desprendi sorrisos mais largos, mais cheios de mim, de alguém, de todos que amo. Ao olhar pela janela, vi mais que folhas amarelas.

Vi o sol.

E os brotos novos que saem dos galhos da árvore.

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Aquele texto

22 de Junho de 2010

Para ler ouvindo The Fall of the Worlds Own Optimist, de Aimee Mann.

Sonhei com isso algumas vezes. Dei de ombros quando precisei. Era o necessário. O tempo  das coisas. Não, aquele texto não era pra mim. Hoje percebo isso com mais sagacidade que antes.

Não chorei quando precisava, porém. Preferi fazê-lo em momentos que acreditava serem misticamente mais críveis, pra mim e pro mundo. Preferi o crer sem realmente sentir, apesar de também não saber ao certo. Ou será que o simples ato de crer me fez também sentir? Isso necessariamente tem que vir antes ou depois?

Gostaria de ter estado naquele olhos. Andado pequenos passos logo ali, logo atrás. Percorrido alguns pensamentos, fagulha que fosse. Acho que nem isso. Queria ter participado de mais conversas. Ser motivo delas, talvez. Baixinho, da boca pro ouvido. Pertinho. Queria ter tido pra. Queria não. Devia ter tido pra mim aqueles lábios, uma noite que fosse.

Mas não foi.

Fiquei em segundo lugar. E isso é tudo que vou conhecer desse mundo, dessa vida? Não queria que fosse assim, mas tenho acreditado cada vez mais, muito a contragosto, nessa coisa de destino, de vibe pronta. Quinze minutos em potência máxima no microondas e tá feito. O meu é sempre o lugar após o primeiro. Isso porque sempre acreditei que as dores e delícias do primeiro lugar são sempre relativas. Sempre acreditei que nem sempre se ganha no primeiro lugar. Agora, não sei mais em que acreditar.

São tantos erros, tantas ilusões de um dia. De outro dia. Do dia após. Dos dias e dias que passam. E se eu tivesse. Era um vez. Era outrora. Agora não é mais. É outro tempo, são outros acasos. Os cavalos brancos estão em outros campos. Pisoteiam os morangos. Sujam de rubro o branco-neve dos cascos, das coxas, dos dias.

Estou cansado, enfim. Sempre cansado. Como se uma preguiça gigante estivesse atracada dentro de mim, impedindo que meus músculos se movam, que minha vida ande. Algo há tempos se quebrou, e não sei o que é.  Nas madrugadas vou catando os cacos que sobraram. Recomponho-me sempre após as três da manhã. É aí que páro de me iludir, que coloco os pés no chão. No outro dia, percebo que andei sobre ovos. Ou sobre meus próprios cacos, quem sabe? Afinal, poderia consertar o que está quebrado? Serei um dia aquele cara do qual quero me orgulhar? Será que até o fim da noite, às três da manhã, terei força pra catar todos os cacos e me recompor por inteiro, sem faltar nada? Terei forças pra parar de vislumbrar e chegar às vias de fato?

Da vida, só sei que aquele texto não era pra mim.

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Strange transmissions

29 de Maio de 2010

Vou olhar os caminhos, o que tiver mais coração, eu sigo.

Caio Fernando Abreu.

– Ainda passa um Parque Edu Chaves por aqui?

– Esperamos que sim.

À meia-noite, perguntei e sorri para o casal, que retribuiu, tanto a resposta quanto o sorriso.

A menina feia de cabelo encaracolado, desgrenhado e seco inventava trejeitos. Radiante, esfuziante. Parecia ter recebido uma proposta bombástica do companheiro. Sexo ou sexo?, pensei e sorri por dentro.  Já no ônibus, ela pula nos braços do (possível) namorado, recostando-se no banco com um sorriso largo, entremeado pelas tachinhas do aparelho fixo. O rapaz, um homem esguio de sardas e óculos, retribui o carinho no resguardo, com um beijinho na ponta do nariz dela, que parou com o agito dos trejeitos e se recostou no ombro dele, quieta, sorrindo de canto de boca.

Uma senhora negra, pequena, de olhos amendoados e faixa no cabelo, fitou inúmeras vezes o casal no momento do leve estardalhaço que fizeram. Aliás, que a menina fez, com seus trejeitos exagerados e um tanto quanto chatos, até. Confesso que também olhei de rabo de olho, pra não passar batida a impressão do momento.

A noite tinha sido boa, mas, como sempre, um tanto solitária e com hora pra terminar, como muitas das noites paulistanas. Quem inventou, afinal, que essa cidade não pára? Tudo tem hota pra terminar, com ou sem sucesso. Não queria que essa noite terminasse assim, no deserto do metrô, do ponto de ônibus, da minha rua, da minha sala, do meu quarto, da minha janela. Ainda mais vendo um casal estranho trocar carícias no ponto de ônibus e imaginá-los trocando ainda mais carícias pela rua, pela sala, pelo quarto, pela cama…

À meia-noite, num horário impróprio, essa cena real-imaginária me deprimiu. Não porque eu não achasse legal ou porque eram feios a sua maneira, mas porque queria estar na mesma situação, voltando pra casa abobalhado, recebendo propostas indecorosas ao pé do ouvido. Pra piorar, ouvia Aimee Mann. Save me, como sempre. Seria mais deprimente se fosse Billie Holiday ou Dinah Washington, pensei.

E enquanto ouvia minhas canções magnolescas, um ônibus vazio passou ao lado do que eu estava. Encontrava-me em pé, com um fone de ouvido grotesco, segurando a barra de ferro, me preparando pra descer, quando a música subiu. Daí vi alguém familiar dentro do ônibus ao lado, de relance, coisa de cinco segundos. Senti uma pequena palpitação, sem querer. Transmissões estranhas, da mente pro coração. Parecia alguém que conheci em outros carnavais. Literalmente.

Não sabia o que sentir. Aliás, sabia sim. Uma palpitação leve e ao mesmo tempo eufórica com um gosto de vinho no céu de boca. Algumas poucas palavras soltas e uma vontade indescritível de estar ali, naquela cidade, acompanhado de amigos e amores. Um olhar desavisado pros lados, como que esperasse cruzar com outro olhar, também desavisado, e trocar olhares desavisados de tempos em tempos, sem muito compromisso, sem muita exaltação aparente. Uma vontade louca de ser eu mesmo e de, contraditória e igualmente, ser alguém diferente daquilo que já fui, mais igual ao que sou hoje, mais igual ao que possivelmente serei amanhã ou depois.

Sabia sim que sentimento era esse e não era tristeza: era esperança.

Quando descobri o que era, cheguei ao meu ponto. Ainda esperançoso, andei pela rua escura, sem uma viva alma que me acompanhasse até o portão do condomínio. Ainda ouvia música, mas agora nada tão magnolesco, nada tão Save me. Estava mais pra Norah Jones. Lembro de um suave I belong to you vindo da letra.

E eu real e fantasiosamente pertencia. Pertencia agora à grande metrópole. Pertencia a mim mesmo e ao mundo. Pertencia às possibilidades. Pertencia, permanecia, provocaria, fantasiaria, realizaria, profetizei pra mim mesmo em voz alta.

Afinal, ao entrar no  meu quarto, olhar a rua vazia pela janela, acender um cigarro e sentir o vento, sentia que, depois de alguns meses tentando esquecer, eu ainda lembrava, com um carinho tão grande e tão surreal. Lembrava das pessoas e do mundo em que vivia. Lembrava das minhas eternas responsabilidades. Lembrava dos carnavais. E esperava o mundo que viria, sem ao menos saber que ele, o mundo, já estava ali, sob meus pés. E a esperança era isso: sabendo que mesmo sem pátria, sem partido, sem alguém, eu ainda tinha pernas pra bater, gentes pra conhecer, novos pontos de ônibus, novas ruas pra andar.

Eu realmente belong.

E, sim, além de pernas, descobri que tenho asas pra bater.

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Uma vida em branco e branco.

27 de Março de 2010

– Abraça tua loucura antes que seja tarde demais.

O marinheiro, Caio Fernando Abreu.

Havia se apaixonado milhares de vezes por milhares de pessoas. E milhares de vezes pela mesma pessoa. Mas isso não importava mais. Nada disso importava mais. A vida se tornara um caleidoscópio vazio de cor. Sem vidro, sem cor, sem espelho, sem mão, sem girar, sem nada. Sem absolutamente nada que fizesse sentido. Mas pra que sentido?, pensou. Tanta gente vive por aí, sem precisar de nada disso. Perambulando. Feliz da vida. Será? Felicidade por fora, tristeza por dentro, pensou. Como ele.  Talvez. Como uma casa bonita, pintada, adornada por fora e sem nada por dentro, cheia de paredes descascadas e rachaduras expostas. Como sua casa, como sua vida. Talvez.

Tinha sede.

Saiu do chão. Parou de olhar o teto branco do quarto. Levantou-se com seus pés sujos de rua e foi pra cozinha. Molenga. Cheio de si, cheio de nada, vazio de tudo. Bebeu água na tentativa de se encher. Queria mesmo é encher a cara, isso sim. Mas não tinha bebida, não tinha dinheiro, não tinha carro, não tinha casa própria, não tinha mulher, não tinha filhos, não tinha emprego. Não tinha coragem.

Tinha só a cabeça cheia de pensamentos e vazia de ações. O corpo ao mesmo tempo que queria, não conseguia. Pensou em pensar algo, mas ficou com preguiça, já que pensar era a única coisa que fazia há tempos.  Lembranças de um passado remediado, mas infectado eternamente. Como alguém com HIV. Toma coquetel daqui, remédio dali, AZT acolá, mas continua com a maldita chaga aberta ali, dentro de si, sem cura, sem culpa, sem dó. 

Decidiu correr. Pra esquecer qualquer coisa. Seja lá o que fosse. Correu de um lado pro outro da sala. Correu, correu, correu, correu, correu. Até ficar suado e ofegante. Parecia ter tomado um banho de chuva ou entrado no chuveiro com roupa. Estava só de camiseta e cueca brancas. Parecia completamente molhado.

Subiu pro quarto novamente. Fechou a porta. E esperou. Deitado no chão, de camiseta e cueca, todo suado, olhando um ponto fixo no teto branco. Ouvia os sons da rua. Meninada pulando corda, jogando amarelinha, pique-esconde, pique-pega, plic plic, ploc ploc, pluct, plact, zum. O som do churrasco dos vizinhos também entrava pela janela entreaberta. Gente batendo talher em prato, conversando alto, uma mulher gritando, Lady Gaga desafinada com um batidão qualquer por trás. Trilha sonora de um dia feliz, clichê e global, pensou. Durante muito tempo permaneceu ali. Na espera, na escuta. Não queria olhar e nem ser olhado da janela. Não queria que a felicidade mecânica, monstruosa, lá de fora, interrompesse seu momento de. Não sabia o que. Que momento era aquele? Momento depressão? Momento fossa? Momento Abissal? Que palavra bonita abissal, não é? Mas momento Amy Winehouse é que não era. E não via aquele ali como um dos supracitados momentos da vida. Estava fazendo aquilo que sempre fazia, depois do ocorrido. Não fazia nada. Isso mesmo. Não fazia absolutamente nada. Não se deprimia, não ficava na fossa, não caía nos abismos do coração, mesmo porque não valia mais a pena. Só ficava deitado, de camiseta e cuecas brancas, olhando pro ponto fixo no teto branco, enquanto pensava na vida branca que levava, na vida colorida que tinha levado, no que havia lhe ocorrido de marrom-cor-de-merda e no que haveria ainda de acontecer, cor vazada, não-cor. Mais nada. Esperava, somente. Sabia que tinha de esperar. Não sabia o que ou quem, mas tinha que esperar. Ali, deitado, pensando. 

O suor da correria do desatino já tinha secado há muito tempo. A noite começava a imperar. Súbita, majestosa, de um azul latente que chegava a doer nos olhos. E no coração. As estrelas, envoltas de uma luz magnífica, pareciam ter ganhado um contraste a mais em algum programa de edição, coisa parecida com Tim Burton. Ele não viu nada. Continuava deitado. Na espera, na escuta.

Até que ouviu o alguma coisa bater na janela, como uma pedrinha jogada em direção ao vidro. Pensou naqueles filmes quando o menininho joga uma pedra na janela da menininha pra fazerem algo proibido, correrem algum risco em alguma aventura com algum amor com algum afeto com algum carinho quem sabe. Levantou a cabeça pra olhar. Nada. Aparentemente. Voltou a deitar.

Ouviu o barulho novamente. E novamente. E novamente.

Daí começou a ficar apreensivo. Mas não apreensivo de preocupado. Não. Apreensivo pra saber qual seria o próximo passo. Ou se ficaria só naquelas batidinhas na janela. Estava curioso, na verdade. Isso mesmo. Curiosidade. Há quanto tempo não sentia? Ouviu outro barulho. Dessa vez mais brusco, como se alguém subisse do chão até a janela do quarto, no segundo andar. Como se alguma coisa se rastejasse. Levantou a cabeça novamente. Uma luz verde começou a aparecer pela janela. Cada vez mais forte, mais clara. Estranho não sentir medo em momento algum. Estranho não pensar em etês-vampiros-duendes-lobisomens-jason-freddy-krueger-samara-seven-days-galinhas-pretas-de-macumba ou qualquer coisa do tipo.

Sentia curiosidade. E agora esperança. Uma esperança que não sentia há tempos. Dias, anos, meses, séculos talvez.

A luz adentrou completamente o quarto branco e iluminou o teto branco, o ponto fixo no teto branco, a camiseta e a cueca brancas. Iluminou-o todo. Dos pés à cabeça, do cóccix até o pescoço. Foi tomando forma. Transformou-se na mãe, no pai, nos familiares, nos amigos, nos amores. Transformou-se em todos que de alguma forma tocaram sua vida. Transformou-se em seu último abandono. Em sua última desilusão. Sob essa forma, a luz transmutada em anjo-bom-anjo-mau lhe disse:

– Abraça tua loucura antes que seja tarde demais.

Lembrava dessa frase. Lembrou de Caio, lembrou do marinheiro. Lembrou do homem na casa de retalhos coloridos e da rua a correr. Lembrou do navegar. Pensou em chorar, mas achou muito clichê. E a luz sabia disso. Sabia disso tudo. De sua família, de seus amigos, de seus amores, de seu maior amor, de sua desilusão maior, de sua vida partida em duas. Estava ali. Sabendo de todos os seus movimentos. Antigos, presentes e futuros. De todos os seus pensamentos. Possíveis angústias. Possíveis alegrias.

Olhou para a luz, que sorriu. Quis beijá-la, quis possuí-la. Mas o convite era para abraçá-la.

Abraçou-a. Abraçou sua loucura transmutada, sabendo que isso só podia ser uma loucura. Diferente do homem de Caio que saiu pela rua afora, esse realmente abraçou a loucura e se viu livre ao seu lado.

– Como Peter Pan ou Super-homem. Não importa. Salve-me. Venha e me salve. Desse bando de loucos, que, como eu, acham que nunca vão amar ninguém.

As luz foi se desfazendo, sorrindo, gargalhando, na verdade, retornando de onde tinha vindo. Saía pela janela afora. Ele foi seguindo o fluxo, lento, harmônico, leve. Via todas as formas se transmutarem novamente, de trás pra frente, como num filme que volta rápido na fita. O último e maior amor, os amores anteriores, os amigos, os familiares, o pai, a mãe. Ele mesmo. Cada um com sua calma, cada um com sua culpa. Como se estivesse se vendo num espelho luminoso, como se um holograma, um espírito dele mesmo estivesse na sua frente, sorriu para si mesmo, se deu um beijo no rosto.

– A dor acabou. Vai. Estrela, estrela. Não és mais só. Não sofres mais. Não és mais parte. És todo.

E a luz verde se foi, em vários pontos luminosos, pequenos, frações, que vistas de baixo, lá em cima, formavam um sorriso. O sorriso do gato de Alice, envolvendo a lua minguante, no seu céu de contrastes luminosos. De Tim Burton.

E entre mortos e feridos, dessa brincadeira óbvia de um mais um que dava dois, ele e a loucura saíram.

Sãos e salvos.

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Próxima estação: Liberdade

26 de Março de 2010

 

Fanatismo

Minhálma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és se quer razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida…
Passo no mundo, meu amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

“Tudo no mundo é frágil, tudo passa…”
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio do Fim!…”

Florbela Espanca

As primeiras semanas em São Paulo me fizeram bem. Acho. Parece que me tornei outro. Completamente diferente daquele que era antes, mas ao mesmo tempo igual, mais igual que nunca, mais eu mesmo em mim mesmo, na verdade. Há tempos não sentia essa coisa contraditória, mas gostosa, misteriosa, cheia de vida, de experimentar de novos rumos, de novas gentes, de novos olhares.

Logo na primeira semana de vislumbres na selva de pedra, ainda me acostumando com os hábitos da megalópole, como pegar metrô, ônibus, andar pra lá, andar pra cá, conhecer lugar daqui, canto dali, gente de acolá, fiquei surpreso com uma sensibilidade sutil, que não esperava encontrar na cidade grande, em meio a tanta pedra, tanto prédio, tanto arranhacéu.

Num final de semana que estava sozinho, sentado num dos bares-restaurante da Liberdade, bairro onde me instalei durante minhas primeiras semanas, na casa de uma amiga muito querida, fui logo pra pista de sushis, nigiris e outras comidas orientais e comecei a me servir. De início não reparei nenhum movimento fora do normal, nenhum olhar desviado, nada de causar comoção. Entrei na fila para pesar o prato de sushis e daí reparei que uma garota me olhava. Devia ter cerca de vinte anos, cabelos ruivos, olhos pintados, nariz pequeno e arrebitado. Bonita.

Sentei-me numa bancada e comecei a pensar no que faria aquele dia. Poderia ir ao MASP, ao cinema ou até mesmo perambular pela feirinha que acontecia ali mesmo. Tinha o dia livre pra vagabundear. Foi nesse engano dos pensamentos que aconteceu. A garota ruiva de olhos pintados encostou levemente a mão direita em meu ombro, olhou com certa timidez nos meus olhos e disse:

– Até mais…

E colocou uma pequena comanda ao lado do meu prato. Achei estranho, mas sorri, antes que ela desse as costas e partisse rua afora, através das barraquinhas da feira. De súbito abri o papel e lá estava escrito seu e-mail. Confesso que ruborizei, e logo depois dei uma gargalhada, sozinho, sentado na bancada, com um nigiri de salmão entre os hashis.

Pretendia conversar com ela, nem que fosse pra saber quem era, o que fazia, que tipo de música gostava. Coisas banais, desse tipo.

Mas, no fim das contas, acabei não fazendo nada. Não tinha internet, não tinha tempo, não tinha apartamento. Tinha apenas alguns amigos de longa data, uma mochila cheia de roupas sujas, um colchão inflável, muita esperança e pernas pra bater.

Dias depois, como sempre, e já acostumado com meu trajeto diário, desci na estação Paraíso e logo entrei num trem em direção à Vila Madalena, a fim de ver o famigerado apartamento da rua Nelson Antônio. Aquele, com o quarto esquizofrênico.

Ao abrir as portas do trem, me deparei com uma frase de Florbela Espanca, trecho de Fanatismo: E, olhos postos em ti, digo de rastros: “Ah! Podem voar mundos, morrer astros, Que tu és como Deus: Princípio do Fim!…”. Fiquei ali, parado, lendo, relendo, lendo novamente e denovo aquela frase. Lembrei da vida de antes, dos amigos de outrora, das coisas que, de uma forma ou de outra, deixei pra trás. Enxerguei a vida de agora, sem olhar pros lados, só no pensamento, e não vi quase nada, só algumas conversas, alguns encontros e algumas despedidas. Não pensei nada de futuro.

Comecei a chorar. Ali mesmo, no metrô, de frente com Florbela Espanca.

Um choro leve, sem expressão evidente, sem mexer os músculos da face. Apenas algumas lágrimas solitárias, que saíam despercebidas. Não sabia se era saudade, se era desencanto, se era esperança, se era emoção ou se era simplesmente Florbela Espanca me espancando. Só sei que chorei, com os olhos fixos na frase. Saí do mundo, de qualquer mundo que pudesse existir. Não importava o passado, o presente e muito menos o futuro. Durante aqueles dois, três minutos, imperava Florbela, suas e minhas sensibilidades. Nem me dei conta de que o tempo passava. Aos poucos fui recobrando os sentidos, até que veio a voz mecânica.

– Próxima estação: Consolação.

Reparei que uma senhora se levantou e ficou ao meu lado, lendo a frase junto comigo. Provavelmente deve ter olhado pro lado e achado estranho um rapaz barbado e inexpressivo, todo choroso em frente à frase de metrô. Ela leu, olhou pro meu rosto e saiu pela porta, que já estava aberta em frente às letras garrafais: Con-so-la-ção.

Quando a senhora desceu da estação, observei-a saindo e, de súbito, olhei pro outro lado. A menina de cabelos ruivos e olhos pintados me observava e também descia, junto de uma amiga. Fiquei estático, com os olhos marejados, olhando fixamente pra ela, enquanto descia, desviando o o tímido olhar. Ainda me deu uma olhadela até que a porta se fechasse e desaparecesse completamente da minha vista.

Confesso que fiquei extasiado. Tinha até me esquecido de tudo que havia pensado quando li a frase no metrô. Na sexta maior cidade do planeta, dois encontros inusitados com a mesma conhecida-desconhecida. Provavelmente ela estava ali durante todo o trajeto e, quem sabe, descido comigo na mesma estação, me observando, pensando em como era estranho me ver chorar ou comer sushi. Ou não, talvez não pensasse em nada. Talvez só gostasse de me observar com seus olhos castanhos pintados a la Amy Winehouse. Era, de toda forma, um amor particular, um pequeno fantasma amoroso, que surgia e ressurgia em momentos inusitados. Enfim… Aconteceu…

Em um outro momento chorei ao ler Florbela Espanca dentro do metrô, pouco tempo depois desse estranho ocorrido. O choro era o mesmo, sem expressão. Eram quase sete da manhã, e tínhamos acabado de sair de um inferninho chamado Sarajevo, na Augusta. Estava muito bêbado e acompanhado de uma amiga também louca. Não me lembro da frase, do momento e de quem estava em volta. Mas lembro que pensei novamente nas mesmas coisas que havia pensado quando chorei da primeira vez e, dessa vez, pensei também em Consolação, em Augusta, em Angélica, em Madalena, em Maria, na senhora que lia a frase comigo e na menina de cabelos ruivos e olhos pintados. Talvez elas tivessem um desses nomes, quem sabe, quem iria de saber? Não sei. E não sei se quero saber. Prefiro deixar que a mística desses dias de calma loucura um dia me digam, ao conversarem comigo, me abraçando nos hábitos que nunca são hábitos dessa cidade tão maravilhosa, tão acolhedora e sempre tão louca. Extremamente louca. Assim como minha amiga, que me consolava, querendo saber o porque do choro, da vela e da fita amarela. Sem saber ela que tudo aquilo era tristeza misturada com felicidade, equilíbrio com loucura, medida sem medida, que de vez em quando extrapola, sem ter nem saber. Que tudo era princípio do fim, que tudo era Deus, sempre.

Ficamos nos falando aos poucos, aos solavancos até descer, escutando a voz baixinha do maquinista, que dizia:

– Próxima estação: Liberdade.

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A porta da geladeira

4 de Fevereiro de 2010

ou Tudo sobre minha geladeira

“Eu simplesmente posso dizer que não o escrevi: fui escrito por ele. Ao contrário de todos os outros, não seguiu nenhum seguro plano prévio. Eu simplesmente não sabia ao certo o que queria dizer ou contar. Para saber, foi preciso aceitar escrevê-lo meio às cegas, correndo todos os riscos.”

Caio Fernando Abreu,  Para Não Gritar.

Na geladeira, nada de nada: dois sucos de caixa, quatro garrafinhas de água, duas ou três maçãs, quatro cebolas pequenas, molhos para salada, nenhuma salada. Num flash cogitou entrar na geladeira, como Mary-Louise Parker em Angels in America; tentar alguma coisa nova, inovadora, vai que dá certo, pensou. Mas não tinha comprimidos de valium e, além do mais, não queria criar alucinações. Queria que as alucinações viessem até ele, como num sonho psicodélico que se transpõe pro plano material.

Gostava de pensar nas coisas, fritar os nervos com relativizações descabidas, suposições do-que-poderia-ser-ou-ter-sido-ou-vir-a-ser. Fantasiar um pouco a realidade sem graça, sei lá. Criar estratagemas que provavelmente não iria utilizar, por mais que desejasse. Isso porque tinha medo de ser sincero demais com as pessoas e com as coisas que gostava. Na verdade, tinha medo que o achassem bizarro. Afinal, ninguém tenta a boa sorte entrando numa geladeira quase vazia. Só a Mary-Louise Parker, claro. E ele. Ou não. Será?!

Nesse frigir dos pensamentos, lhe ocorreu uma dura e corriqueira reflexão: nunca iria encontrar ninguém que o amasse de verdade. Só amor não correspondido, coisa platônica. Tudo amor assim, daquele jeito ruim, que ninguém ou quase ninguém quer ter. Não sabia porque havia cogitado entrar na geladeira e logo após pensado nisso. Não havia correlação direta entre as duas coisas. Ou havia?!

Ficou triste e aflito sem saber o porque das coisas da vida e do mundo. Deu aquele aperto estranho no coração, um comichão nas pontas dos dedos. Tentou se concentrar na bizarrice dos pensamentos pra ver de onde tinha tirado tamanha e horrível constatação. Relembrou pequenas aflições, velhos amores, grandes paixões, altos astrais, altas transas, lindas canções. Tudo em questão de segundos, como se fossem flashs rápidos de uma câmera fotográfica, tiros de metralhadora. Visualizava amor em tudo e em nada ao mesmo tempo. Coisas, momentos e pessoas tão fluidas e ao mesmo tempo tão presentes que não tinha bases para continuar pensando e refletindo sobre. Não sabia o que pensar, na verdade. Tinha medo que aquela reflexão fosse verdadeira. Tinha mais medo ainda de não saber o que representava o sentimento amor, pois esta sim seria a  constatação real e verdadeira de que tudo aquilo que tinha vivido até abrir a maldita porta da geladeira teria sido em vão. Ou não!?

Talvez, tudo que viveu e aquele momento em que abriu a geladeira naquele domingo à noite, fossem um subterfúgio da vida, um aprendizado prévio pra que ele agora fosse mais sincero consigo e com os outros, tivesse menos medo, e conseguisse alcançar o amor que nunca havia alcançado. Mais ou menos aquela coisa de igreja, que diz que “num lampejo de consciência e verdade ele alcançou a luz e mudou de vida”. Ou era uma forma de dizer a si mesmo que era um verdadeiro bosta, uma merda ambulante e sem amores. Ou, ainda, que tudo era apenas uma grande bobagem, uma peça que seus pensamentos estavam pregando para assombrá-lo.

Realmente, não sabia o que eram esses pensamentos. E não sabia também o que considerava como sendo amor. Não sabia se o que havia sentido anos atrás se configurava enquanto. Não sabia mesmo. Aliás, não conseguia reproduzir esse sentimento agora, de frente com a geladeira aberta. Com isso, não sabia se já havia amado ou não e se já havia sido amado por alguém. Não tinha base pra comparação, entende?

Não, ninguém entende. Nem eu.

Mas o fato é que isso o frustrou absurdamente. Era a constatação mais feia de todas. Não sabia mais amar, ou pior, nunca soube, pois não conseguia reproduzir o que já havia sentido, não sabia nem por onde começar. Lembrava só dos arrepios, dos desejos, dos gemidos, dos vislumbres, dos abraços, dos beijinhos, dos carinhos sem ter fim. Lembrava de algumas coisas desse tipo. E isso já não era a livre manifestação do amor? Sei lá, pode ser de dor também, né?

Nunca se sabe. Tudo é tão difícil, tão estranho.  Preferiu pensar na concepção abragente e subjetiva de Vinícius. O amor é o carinho, é o espinho que não se vê em cada flor. É a vida quando chega sangrando aberta em pétalas de amor. Não queria mais pensar nisso, então, encontrou uma forma de se confortar. Nem oito nem oitenta. Nem amor, nem dor. Tudo é nada, nada é tudo. Everything is Everything, como dizia Lauryn Hill. Nada mais justo. Nada mais poético. Nada mais fugaz.

Tudo isso pra que, na real, as caraminholas continuassem ali, intactas, mesmo com todo o esforço de Vinícius de Moraes, Lauryn Hill, Mary-Louise Parker, o caralho a quatro.

Pior que o babaca só queria tomar um suco de manga. E acabou vendo que o coração estava tão vazio e frio quanto a geladeira.

Sorte que a porta ainda continua aberta.

Existem coisas na vida que são fruto de uma sinceridade mórbida, como esse texto. Escrevi em terceira pessoa por acreditar linguisticamente que essa seja uma forma “bonita” de dizer as coisas. Mas falo de mim mesmo, sem hipocrisias e sem arrependimentos, na tentativa de ser alguém mais feliz e completo. E, por mais que esse não seja um dos textos mais bem elaborados gramaticalmente e um tanto quanto difícil de entender numa primeira leitura, fico feliz por tê-lo escrito. Bêbado e de ímpeto, claramente. Mais feliz ainda por tê-lo postado. Bêbado e de ímpeto, claramente. Pois representa aquele sentimento de “consciência para ter coragem”, extremamente clichê, pelo menos pra mim, que não sinto há muito tempo. Vejo como um sinal. Uma pequena luz, mínima que seja. Uma porta aberta. Sinal de novos tempos, novos prólogos, novas histórias, novos finais. Esperança, enfim.

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The hard core of Cheek to Cheek

20 de Janeiro de 2010

“Sempre da vida o mesmo estranho mal, e o coração a mesma chaga aberta.”

Florbela Espanca.

Era a primeira vez que avistava um ser mítico, de perto, de longe, não sabia. Os planos geográficos pareciam ter saído do chão como numa vertigem de um quadro surrealista. Teve certo medo num primeiro momento. Não sei se essa é a palavra mais correta, mas sentiu o coração disparar acelerado, um leve torpor correr pelo corpo, arrepios nos pêlos do braço, da nuca, da púbis. Deixou o cigarro cair. Sem querer. Sei…

Controlou instintivamente o olhar.

Num disfarce de olhos, observou sua orquídea selvagem dançando ao sol das três da manhã. Na verdade, sob as luzes amareladas e quentes de um bar abarrotado de gente, fumaça, embriaguez e sexo. Simulacros de alegria, pensou. Místico, se não fosse tão clichê.

O personagem mágico que arrepiara seus pêlos mais íntimos logo num primeiro relance, brilhava ao som dos sambas da vida, jogava o corpo aos meandros do partido alto, dispunha ao vento os cachos cor de mel, partilhava sorrisos largos de madrugada. De longe parecia um sentimento perfeito. Uma epifania de gestos e diálogos estranhos, um tanto nervosos, um tanto calmos, um tanto forçados, um tanto naturais. Era o equilíbrio nos desequilíbrios. Tinha sinceridade no olhar, acima de tudo. Isso que mais encantava. Isso que mais doía. Por isso da palavra medo, talvez.

Não podia ter, nem saber. Aliás, não deveria. Essa figura maravilhosa não podia ser sua. Não tinha cacife o bastante para lidar com a sinceridade, ainda mais do olhar. Nem tinha o pau tão doce assim para chegar chegando, para escancarar os muros do desconhecido, da fantasia.

Além do mais, não sabia quando partir, nem quando chegar. Não sabia nada de nada. Apenas sabia que não podia ter e ponto. Não podia criar uma relação, mínima que fosse, sabendo que tinha a possibilidade mais possível de partir. Ou de ficar, quem sabe?

Não, não e não. Nada de volubilidades esquizofrênicas, falou alto. Não podia ficar e não podia ter. Afinal, não sabia nada de sua vida, nem da vida de ningúem. Não sabia nem ao certo quais as intenções divinas daqueles cachos, nem as pretensões de seus sambas.

Só sabia dos encantos. E do corpo e do sorriso e dos cachos e dos requebros e do gosto pelos sambas.

Aproximou-se de ímpeto, com o cigarro firme entre os dedos. Parou no meio da roda de samba e olhou bem fundo nos olhos da criatura. Castanhos tão claros que, quando as luzes amarelas refletiam nas pupilas, ficavam esverdeados. Olhou fixamente durante alguns segundos, queria sentir a tal sinceridade.

Enxergou determinado espanto.

Natural, pensou: um bêbado para em sua frente e começa a te olhar como se fosse te devorar vivo, ali mesmo. Não sabia qual o próximo passo a seguir. Falar, dialogar, gritar, sair correndo, dar uma baforada no cigarro carcomido de suor ou continuar olhando até que alguém fizesse alguma coisa? Não precisou pensar muito.

De relance, sentiu os cachos se aproximarem de seu rosto, de sua orelha, seguirem até seu pescoço e subirem bruscamente até o centro de sua testa e pararem ali. Dois olhares fixos, colados um no outro. Dois olhos castanhos, dois olhos verdes. Parados ali, na finitude infinita do bar.

Primeiro se abraçaram, como se sentissem uma saudade tão imensa e intensa um do outro, de tudo que haviam vivido, de tudo que tinham para viver. Mas, detalhe. Ainda não tinham vivido nada, só a sensação do samba, dos cachos, dos pêlos e dos olhares.

Depois, como se fossem antigos amantes, se beijaram. Um beijo bonito, parecido com o de Amélie Poulain em Nino Quincampoix. Calmaria depois do tufão. Deram as mãos, se beijaram novamente, dessa vez como Audrey Hepburn e George Peppard em Bonequinha de Luxo. Só faltava o gato.  Olharam-se novamente, mas dessa vez com ares de reconhecimento, de sinceridade mesmo. Sorriram calmos, leves, estáticos enquanto o mundo desabava em samba.

Aliás, já não ouviam mais samba.

Eram Fred Astaire e Ginger Rogers dançando Cheek to Cheek. Não estavam envolvidos em plumas e paetês, mas eram, definitivamente, uma aura que transbordava energia e beleza em meio às hipocrisias e desapegos de uma noite suja.

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Todas as cores da Liberdade

20 de Janeiro de 2010

Todas as cores da Liberdade.
A verdadeira revolução sexual ainda está por vir.

Documentário sobre revolução sexual produzido por Diza Andrade, Raul Gondim, Thais Faria, Talita Aquino e Thiago Padovan.

Viçosa, dezembro de 2009.

Sinopse poética:

“Não conquistaremos nossos direitos ficando tranquilos em nossos armários… Estamos saindo para lutar contra as mentiras, os mitos, as distorções.” Harvey Milk.

“Não se nasce mulher: torna-se mulher.” Simone de Beauvoir.

O histórico das lutas das mulheres e dos homossexuais vem da opressão a essas minorias. Os movimentos estudantis, o movimento hippie e de contracultura, o uso de contraceptivos e uma década revolucionária em diversos aspectos levaram à liberação sexual.

O documentário Todas as cores da Liberdade traz um pouco dessa história de lutas e opressões, de avanços e recuos, de amores e libertações.

Todas as cores da Liberdade – Parte 1

Todas as cores da Liberdade – Parte 2

Depois de tanta desavença, loucura e, acima de tudo, partilha, gostaria de parabenizar meus queridos amigos Diza, Raulzito, Thais e Xalita por mais esse trabalho bonito e sensível.
Mas e aí? Foi bom pra vocês?
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Tento de imperfeição

26 de Novembro de 2009

Para ler ouvindo a música mais forte e bela que tiver conhecimento.

Meio-dia e trinta adentrou o recinto. Após um almoço conturbado e uma manhã de cansaço, o explosivo humano corroeu-se através do pátio da construção de vidro, atravessou o corredor de flores silvestres, subiu as escadas de marfim e deu de cara com as pessoas que mais amava e com as que menos gostava nessa vida.

Se é que ainda tinha vida e se é que ainda podia entitulá-la como tal.

Perguntou o que poderia fazer para ajudar, a quantas andava a coisa toda, que caixas deveria carregar… O que fazia ali? O que todos faziam ali? O que toda aquela construção fazia ali? O que todas aquelas vielas tortas faziam ali? O que aquela cidade toda fazia, escondida nos cafundós conservadores de um estado decadente, de um país em declínio?

Por alguns instantes a intolerância tomou conta do seu corpo. Não se sabe o que aconteceu. Desejo de brigar, partir pra cima de alguém, caçar confusão, deixar o demônio operar e apossar-se de sua mente… Não se sabe mesmo, mas seja o que for, essas forças motrizes fizeram festa em sua imaginação como há muito não faziam.

A cabeça doía, mas controlou-se. Fez caras e bocas, sorriu às gargalhadas, flerteu com quem viu de interessante pela frente, olhou os transeuntes com olhos baixos, soturnos, veementes. Lançou mão dos sarcasmos mais bem elaborados e maldosos, diga-se de passagem.

Boas armas, que, quando bem utilizadas, irritam e ferem mais que um soco bem dado, pensou.

Acertou em cheio. Saiu vitorioso, pelo menos, em sua fértil imaginação. Vislumbrou ser odiado mesmo, com toda força e todo ódio desse mundo, agora ou mais tarde, tanto fizesse, tanto houvesse, tanto quisesse.

Duas e meia da tarde adentrou novo recinto. Ambiente estranho, insalubre, parecido com a sensação de afundar-se em areia movediça. Colocou os fones de ouvido na tentativa de reinterpretar suas fantasias mais ousadas através das músicas que mais gostava. Saiu completamente do mundo. De corpo, alma e coração. Não sentia mais nada, nem uma sensação sequer. Tomou de assalto a estratosfera, como se ela fosse demasiado pequena para tamanha neutralidade de sentidos. Queria reabsorver-se de si mesmo, sugar tudo de ruim que existia para construir algo novo por cima, como um prédio em ruínas que é implodido para conferir vida nova em espaço e tempo diferentes.

Após tanto ódio, tanta raiva, tanto mau pressentimento, acalmou o coração. Voltou a si por livre e espontânea vontade de espírito.

Sabia que era volúvel e que essa volubilidade tinha seus encantos, pelo menos, em sua imaginação fértil. A cabeça ainda doía, mas por motivos diferentes. Era a transformação dos sentimentos ruins em renovadas fontes de percepção.

Às seis da tarde, ao desfalecer da aurora, já era outro. Não precisava de recintos, fossem construções de vidro ou ambientes insalubres. Nada disso. Era todo o espaço que podia alcançar com a fantasia. Era realmente outro. Era si mesmo. Nem ódio, nem neutralidade.

Era amor. É amores.

E o resto da história eu não preciso nem contar. Sei que é difícil, mas realize em sua mente, em sua alma e no íntimo do seu ser, um homem realmente feliz. Que de explosivo humano à uma neutralidade estratosférica, encontrou-se no lugar dos amores, das fantasias, das paixões irresolutas e das utopias transformadoras.

Não. Não pense que era perfeito, pois tinha prazer em não sê-lo, pois era feliz nas inconstâncias, nas volubilidades e, principalmente, nos prazeres de transformar as coisas mais humanas.

Era ainda o ódio, era ainda o neutro.

Sabendo, que, no final das contas, era sempre o amor.

E é sempre amores.

Sempre.